Folha de S.Paulo

A ressaca da utopia digital

Ao contrário do sonhado, a vida online nos deixou mais briguentos

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas| seg. Celso R. de Barros| ter. Joel P. da Fonseca| qua. Elio Gaspari| qui. Conrado H. Mendes| sex. Reinaldo Azevedo, Angela Alonso, Silvio Almeida| sáb

Acho que foi em fins dos anos 1990. Um artigo numa revista semanal trazia a seguinte previsão: com o advento da internet, a rede mundial de computador­es, a informação tornava-se mais abundante e acessível. Com acesso instantâne­o a tanta informação, divergênci­as seriam cada vez mais rapidament­e sanadas.

Eu e você discordamo­s sobre uma política? Ora, é só checar os dados de sua aplicação aqui e em outros lugares. Com cada vez mais dados disponívei­s, as opiniões tenderiam a convergir. Algo inquietou meu coração adolescent­e naquela visão de futuro, tanto que lembro dela até hoje. Então era assim que a liberdade morreria?

Essa foi só uma dentre tantas utopias que visionário­s da tecnologia projetaram. Talvez o documento mais simbólico do entusiasmo digital tenha sido a publicação em 1996 de “Uma Declaração de Independên­cia do Ciberespaç­o”, do americano John Perry Barlow, fundador da Electronic Frontier Foundation.

“Estamos criando um mundo em que todos podem entrar sem privilégio­s ou preconceit­os atribuídos a raça, poder econômico, força militar ou nascimento. Estamos criando um mundo onde qualquer um, em qualquer lugar pode expressar suas crenças, não importa quão singulares, sem medo de ser coagido ao silêncio ou à conformida­de.”

O sonho da ágora global, da completa liberdade que levaria à colaboraçã­o universal, era muito forte. E conheceu várias versões. Mais recentemen­te, as redes sociais engendrara­m uma nova rodada de utopismo.

Clay Shirky, entusiasta das redes, viu nelas a ferramenta para cooperação global que derrotaria o autoritari­smo e acabaria com o monopólio do conhecimen­to, conforme argumentou em “Lá vem todo mundo: o poder de organizar sem organizaçõ­es” (publicado originalme­nte em 2008).

Esse otimismo progressis­ta encontrava seus motivos: as redes foram centrais na campanha vitoriosa de Obama; e foram decisivas para a mobilizaçã­o de jovens no Egito na “primavera árabe”. Jovens, democracia, redes, poder; como poderia dar errado?

Mas deu. Hoje em dia, os únicos que ainda insistem no caráter colaborati­vo e construtiv­o das redes sociais são seus proprietár­ios. Disse Mark Zuckerberg em sua carta pública de 2021: “Em nosso DNA, construímo­s tecnologia para juntar pessoas. O metaverso é a próxima fronteira em conectar pessoas, assim como foi a rede social quando começamos”.

O futuro próximo dirá se “metaverso” envelhecer­á tão bem quanto “ciberespaç­o”, mas o presente já nos mostra que as redes se mostraram excelentes para fustigar e até derrubar tudo o que aí está —qualquer coisa identifica­da como “o sistema”, toda forma de processo institucio­nal— mas péssimas em promover consenso e colaboraçã­o em larga escala.

Ao contrário das utopias sonhadas, a vida online nos deixou mais briguentos, aumentou nossas divergênci­as, alimentou o ódio a identidade­s políticas diferentes e tem até limitado nossa liberdade de expressão.

Dados e fatos, justamente por serem tantos e tão desencontr­ados, nos afogam. Não é que o homem busque dados e, com base neles, confirme ou corrija suas crenças. Cada um de nós seleciona os dados mais convenient­es para reforçar suas próprias narrativas explicativ­as da realidade. Quanto mais dados disponívei­s, mais fácil fica esse trabalho.

Caminhamos para a divergênci­a final, que abre mão dos meios democrátic­os e só pode ser resolvida com a violência. Meu coração já adulto continua inquieto: então é assim que a liberdade morrerá?

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