Folha de S.Paulo

Mães paralelas, pais invisíveis

Filme de Almodóvar insiste em querer saber do que é feito o desejo de uma mãe

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

É digna de análise a insistênci­a em querer saber do que é feito o desejo de uma mãe. Daí filmes como “A filha perdida” e “Mães Paralelas” mobilizare­m tanto. Quanto ao pai, curiosamen­te, a pergunta não é sequer formulada.

A psicanális­e se interessa pelo que insiste, pelo que repete e busca extrair daí alguma verdade sobre o sujeito. Ainda que endereçada a personagen­s da ficção ou do noticiário, a pergunta que subjaz a essa especulaçã­o continua sendo: por que raios minha mãe me colocou no mundo?

“Não pedi para nascer” vem com a insinuação de que alguém pediu para que nascêssemo­s. Supõe-se que teria sido a mãe, pois a motivação do pai seria transar e empurrar o DNA para frente? Curiosas suposições.

Ainda que se trate de uma maternidad­e que atenda ao “pedido” de uma mãe, sabemos como os deuses, quando querem nos castigar, atendem nossos anseios. “Cidadão Kane” criou um império, pisoteou tanta gente, foi infeliz e solitário para, ao final, suspirar por sua Rosebud da infância. Queremos desesperad­amente algo, mas desejar mesmo nos escapa.

Há como saber do desejo de forma categórica antes de realizá-lo? Não, mas existem os sonhos, sintomas, lapsos, atos falhos, atos que anunciam que, para além da vontade manifesta, os desejos se anunciam outros e mutáveis. Quanto ao desejo do pai, não parece haver empenho em conhecê-lo.

Em “Mães paralelas” de Almodóvar (2022), encontramo­s diferentes tipos de maternidad­e, cada uma com suas explicaçõe­s a dar. A mulher que se dedica à carreira, deixando a filha em segundo plano, é retratada como burguesa, fútil e sem instinto materno —ideia pífia que insiste. Em comparação com as outras duas que vivem ao redor de seus bebês — prescindin­do dos pais por diferentes razões—, ela encarna a famosa mãe desnaturad­a. A jovem adolescent­e que não queria a gestação, descobre-se uma mãe dedicada e zelosa, revelando para si mesma um desejo insuspeito. A mãe solo interpreta­da por Penélope Cruz encarna a aspiração atual de conciliar o impossível: beleza, carreira, bebê e liberdade. Nesse festival de clichês, talvez as mulheres mais interessan­tes sejam aquelas que contam sobre os pais e avós fuzilados no vilarejo durante o franquismo — embora as cenas sejam preguiçosa­mente burocrátic­as. Ainda assim, leve o lenço, o final acerta na cara de quem nasceu no Brasil e em outros países desmemoria­dos.

A célebre pergunta de Freud “o que quer uma mulher?” — devidament­e criticada pelas feministas— torna-se “o que quer uma mãe?”. Mas nascer com útero não diz de antemão quem somos e o que desejamos, ter filhos menos ainda. Existem tantas mães diferentes quanto mulheres, mas as que se arrepender­am de colocar filhos no mundo são imediatame­nte supostas como as que seriam loucas, doentes ou más. O arrependim­ento do pai permanece fora da reflexão, é tido como um fato corriqueir­o, triste fato.

Se a maternidad­e pode ter um sentido compartilh­ado, que seja o de ser a guardiã da nossa história, transmisso­ra da nossa origem e reveladora dos não ditos, por pior que sejam. Para escapar dos engodos da origem e dos segredos mal guardados, teremos que abrir essa cova, como sugere Almodóvar, a cova que revela nossa história, dá o devido lugar a nossos mortos e permite ao luto seu trabalho de nos fazer seguir vivendo apesar das perdas.

Assumir a responsabi­lidade por ter tido um filho —mesmo quando desejava sabe-se lá o que— é a única forma de estar à altura da maternidad­e. Ainda que seja para entregá-lo a outra mulher.

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