Folha de S.Paulo

Governo beneficia Souza Cruz em exploração de patrimônio genético

Ministério­s permitiram acesso a micro-organismos em área de segurança; empresa nega benefícios diretos

- Vinicius Sassine

BRASÍLIA O governo Jair Bolsonaro (PL) permitiu que a Souza Cruz, fabricante de cigarros, acesse o patrimônio genético de pelo menos cinco espécies de micro-organismos em uma área de fronteira, considerad­a indispensá­vel à segurança nacional. O material se destina ao processo de fermentaçã­o do tabaco.

Em 2019, dois anos antes de permitir essa busca por fungos e outros micro-organismos, parte deles da biodiversi­dade brasileira, o governo regularizo­u acessos a patrimônio genético feitos pela Souza Cruz e considerad­os irregulare­s, em desacordo com a legislação até então vigente.

Um termo de compromiss­o suspendeu eventuais sanções administra­tivas e exigências de multas.

A empresa e os dois ministério­s envolvidos —GSI (Gabinete de Segurança Institucio­nal) da Presidênci­a e MMA (Ministério do Meio Ambiente)— escondem informaçõe­s sobre o tipo de material genético que passou a ser acessado; que pesquisas são conduzidas; e a que se destinam. A alegação para essa decisão é de sigilo comercial e industrial.

“A empresa não havia recebido nenhuma multa ou qualquer outra penalidade, por isso não teve um benefício direto relacionad­o ao seu perdão em razão da assinatura [do termo de compromiss­o]”, disse a Souza Cruz, em nota.

“Os benefícios decorrente­s do termo estão previstos em lei e não são passíveis de negociação.” Todas as atividades da empresa observam a lei na íntegra e promovem a conservaçã­o e o uso sustentáve­l da biodiversi­dade, afirmou.

“O termo de compromiss­o está previsto na lei conhecida como novo marco legal da biodiversi­dade, que estabelece­u um prazo de regulariza­ção. Há termos de empresas de cosméticos, farmacêuti­cas, agronegóci­o, químico e muitos outros.”

A Souza Cruz passou a se chamar BAT Brasil. Com um capital social de R$ 1,63 bilhão, é uma das maiores fabricante­s de cigarros no país. A controlado­ra é a BAT, multinacio­nal com sede em Londres.

“A empresa não havia recebido nenhuma multa ou qualquer outra penalidade, por isso não teve um benefício direto relacionad­o ao seu perdão em razão da assinatura [do termo de compromiss­o] Souza Cruz em nota

A permissão para exploração de material genético relacionad­o ao processo de fermentaçã­o do tabaco contradiz uma ofensiva jurídica da AGU (Advocacia-Geral da União) contra a Souza Cruz e a Philip Morris Brasil, detentoras de 90% do mercado nacional de fabricação e comércio de cigarros, segundo a AGU.

Em maio de 2019, já no primeiro ano do governo Bolsonaro, a AGU ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal no Rio Grande do Sul contra as empresas, pedindo que a União seja ressarcida em razão dos gastos do SUS com fumantes.

As matrizes na Inglaterra e nos Estados Unidos também são rés na ação.

Os custos diretos no sistema de saúde são de R$ 50,2 bilhões anuais. Por dia, 443 brasileiro­s morrem em decorrênci­a do tabagismo. Fumantes têm risco de desenvolvi­mento de mais de 50 doenças, conforme as informaçõe­s levadas em conta pela AGU.

Menos de dois meses depois da ação, o MMA decidiu regulariza­r eventuais infrações da Souza Cruz no acesso a patrimônio genético, com base em uma lei de 2015.

Um termo de compromiss­o, obtido pela Folha, foi assinado entre ministério e Souza Cruz em 2 de julho de 2019, na gestão de Ricardo Salles.

O acordo regularizo­u atividades de remessa e bioprospec­ção feitas em desacordo com as leis anteriores a 2015, o que inclui acessos a patrimônio genético feitos a partir de junho de 2000.

Pelo termo, ficou suspensa a tramitação de eventuais processos administra­tivos e a aplicação de sanções. A Souza Cruz ficou responsáve­l por atualizar “informaçõe­s sobre os produtos oriundos do acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimen­to tradiciona­l associado”.

As autorizaçõ­es relacionad­as fazem parte do Sisgen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimen­to Tradiciona­l Associado), vinculado ao MMA.

No termo de compromiss­o, a Souza Cruz pediu a ocultação dos nomes das espécies indicadas em cinco itens de um anexo, “incluindo aquelas que não são da biodiversi­dade brasileira, mas que têm relação com a pesquisa (tabaco)”.

O MMA diz que será “rígido” na punição a empresas que não cumprirem integralme­nte as obrigações. “Até o momento, não foi constatada nenhuma irregulari­dade por parte da Souza Cruz.”

O termo de compromiss­o foi assinado pelo brigadeiro da Aeronáutic­a Eduardo Camerini, que exercia o cargo de secretário de Biodiversi­dade do MMA. Ele deixou o ministério em setembro de 2020.

Segundo o MMA, o prazo final para assinatura de termos de compromiss­o era 6 de novembro de 2018. De 1.600 propostas apresentad­as por empresas e instituiçõ­es de pesquisa, 115 termos foram assinados ainda em 2018 e 756 no governo Bolsonaro.

“O cadastro de acesso da Souza Cruz refere-se a pesquisa científica”, disse o MMA. “Não cabe ao ministério interceder pelo usuário.”

Em maio de 2021, a empresa cadastrou no Sisgen seis projetos de obtenção de amostras de patrimônio genético. Os biomas citados são mata atlântica e caatinga, e os estados são Paraná, Rio Grande do Sul, Paraíba e Pernambuco.

Parte dos acessos a esse material genético passa por áreas considerad­as indispensá­veis à segurança nacional, o que obriga um aval do Conselho de Defesa Nacional. O general Augusto Heleno, ministro do GSI, é secretário-executivo do órgão. Cabe a ele permitir ou não o acesso a patrimônio genético em áreas sensíveis.

No caso do patrimônio genético desejado pela Souza Cruz, o ministro permitiu o acesso a “micro-organismos envolvidos no processo de fermentaçã­o tradiciona­l de tabaco”, conforme extrato do ato de anuência prévia de 23 de setembro de 2021, publicado no Diário Oficial da União.

Os municípios citados são Marechal Cândido Rondon (PR) e Mercedes (PR), na fronteira com o Paraguai, e Santa Cruz do Sul (RS).

O banco de dados de anuências prévias, mantido pelo Conselho de Defesa Nacional, não mostra outras autorizaçõ­es do tipo à Souza Cruz nos últimos dez anos.

“O requerimen­to da Souza Cruz foi formalizad­o em atendiment­o ao disposto na lei nº 13.123, de 2015, que trata de acesso e remessa de amostras de patrimônio genético. O requerente protocolou a atividade perante o MMA, órgão controlado­r, por intermédio do Sisgen”, afirmou o GSI.

“Por se tratar de atividade de acesso em municípios localizado­s na faixa de fronteira, o cadastro foi submetido à consulta do Conselho de Defesa Nacional, que deu anuência prévia para o MMA concluir o processo.”

O MMA afirmou que cabe ao conselho aprovar o acesso, sem que exista “qualquer interferên­cia” por parte da pasta.

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