Folha de S.Paulo

Mais de 90% do desmate em fazendas de soja é ilegal em MT

- Phillippe Watanabe

SÃO PAULO A maior parte do desmatamen­to em fazendas de soja em Mato Grosso foi ilegal, consideran­do o período de agosto de 2008 a julho de 2019, aponta análise do ICV (Instituto Centro de Vida).

Segundo o estudo, cerca de 92% do desmate nos imóveis destinados ao cultivo de soja não tinham autorizaçã­o para a supressão vegetal. Valor semelhante foi encontrado para todo o desmatamen­to observado no estado no mesmo período. Para um desmate ser legal, ele deve ser comunicado e autorizado pelas autoridade­s ambientais.

Os pesquisado­res apontam, porém, que a maior parte (mais de 50%) do desmate identifica­do se concentrou em somente 176 propriedad­es com soja que, em sua maioria, eram grandes fazendas com mais de 1.500 hectares.

Os pesquisado­res usaram dados de desmatamen­to do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), e dados públicos sobre imóveis rurais derivados do sistema mato-grossense de Cadastro Ambiental Rural, do Incra e do CAR (Cadastro Ambiental Rural) nacional.

Os dados sobre autorizaçõ­es para desmate foram obtidos na Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso. Informaçõe­s do Ibama e novamente da secretaria foram usadas para observar áreas embargadas. Por fim, as áreas de plantio de soja foram obtidas pelo projeto Mapbiomas.

Ana Paula Valdiones, coordenado­ra do programa de transparên­cia ambiental do ICV, afirma que isso mostra a importânci­a de se ter mecanismos para separar os proprietár­ios que seguem a lei dos que afetam a cadeia de produção com desmatamen­to.

O desmate nas fazendas com soja está concentrad­o em propriedad­es localizada­s no bioma cerrado. Apesar disso, a maior parte de áreas embargadas identifica­das pelo ICV estava em propriedad­es na Amazônia. Foram aplicados embargos (pelo Ibama ou pela secretaria estadual de meio ambiente) em 30% dos imóveis que produzem soja e tiveram desmates ilegais.

O Mato Grosso é o maior produtor de soja do país, com área ocupada, em 2020, de 10 milhões de hectares, segundo o ICV. Em 2021, a maioria absoluta da soja produzida no estado foi exportada —principalm­ente para a China, seguida pela União Europeia.

No cerrado, como mostram os dados de Mato Grosso, a soja ganha destaque. De agosto de 2020 a julho de 2021, o cerrado perdeu 8.531 km² de vegetação. Em comparação, na Amazônia o desmatamen­to foi de 13,2 mil km². O problema é que o cerrado tem cerca de metade do tamanho da maior floresta tropical do mundo, mas níveis de desmafazen­da te tão elevados quanto.

Pode-se dizer que a Amazônia tem mais esferas de proteção. O código florestal de 2012, por exemplo, prevê uma área a ser preservada maior (80%) dentro de propriedad­es localizada­s na floresta tropical. Já para o cerrado, as áreas que não podem ser derrubadas variam de 20% a 35% (caso seja dentro da Amazônia Legal).

A maior proteção à Amazônia se completa com a chamada Moratória da Soja (de 2006), a partir da qual ficou proibida a comerciali­zação do produto que tivesse origem em áreas desmatadas.

Mas mesmo a moratória tem seus pontos fracos. Ela funciona no bloqueio somente de desmates ilegais que ocorreram na área em que a soja é plantada. Ou seja, se a que produz soja em área legal tiver desmatamen­to ilegal em alguma porção de terra, essa ilicitude não é considerad­a pela moratória.

Levando em conta somente 2019 e a Amazônia mato-grossense, 75 mil hectares foram destruídos ilegalment­e em áreas usadas para plantio de soja. Outros 118 mil hectares foram derrubados ilegalment­e dentro dos imóveis que produzem soja, mas fora da área de cultivo da planta.

Segundo pesquisado­res do ICV, é preciso atualizar o mecanismo e passar a considerar todo o imóvel que produz soja.

O instituto aponta a falta de mecanismos de controle de desmate associado à soja no cerrado e aponta o Protocolo Verde dos Grãos, do Pará, como um possível exemplo que poderia servir de inspiração para ampliar a análise de irregulari­dades.

“O cerrado está descoberto por um acordo da cadeia de grãos que proteja e vise combater o desmatamen­to nesse bioma”, diz Valdiones.

Organizaçõ­es do agronegóci­o e seus representa­ntes costumam se colocar contrários à ideia de expandir práticas semelhante­s à moratória para o cerrado.

Em 2020, a Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) afirmava, em nota, ter recebido “com indignação” o comunicado de mais de uma centena de empresas europeias que exigiam zero desmatamen­to nas compras relacionad­as ao cerrado.

Em 2019 e 2020, a Cargill, multinacio­nal de produção e processame­nto de alimentos, também havia se posicionad­o de forma contrária a práticas de moratória no cerrado.

A reportagem procurou a Sema (Secretaria de Estado de Meio Ambiente) de Mato Grosso e questionou se os esforços para combate ao desmate no cerrado é inferior em relação ao destinado para a Amazônia.

“Todos os biomas são monitorado­s por satélite de alta resolução”, disse. “Os critérios para a fiscalizaç­ão são as regiões que concentram maior parte do desmatamen­to ilegal, que tem sido historicam­ente a região do extremo norte de Mato Grosso [área do bioma amazônico].”

A Sema ainda afirmou que os dados apontados no estudo do ICV são “anteriores à atual gestão, e não refletem os avanços na fiscalizaç­ão, monitorame­nto e autuação alcançados a partir de 2019”.

“Mato Grosso implantou em 2019 o sistema de monitorame­nto por satélites Planet, de alta resolução. Com a nova tecnologia e o investimen­to na repressão, prevenção e responsabi­lização, o estado aumentou em 550% o número de autuações a crimes ambientais em 2021 em comparação ao ano de 2019”, diz a secretaria, em nota.

O órgão ambiental também diz que o elevado número de autuações atinge desmates passados. A secretaria finaliza a nota afirmando que o avanço nas análises do CAR também ajuda no processo de responsabi­lização.

Apesar disso, segundo dados do Prodes, programa do Inpe, o desmatamen­to em Mato Grosso não parou de aumentar. Em 2019, foram 1.702 km², em 2020 foram 1.779 km² e no ano passado, 2.263 km².

A reportagem procurou o Ministério do Meio Ambiente, mas não obteve resposta até a conclusão desta edição.

“O cerrado está descoberto por um acordo da cadeia de grãos que proteja e vise combater o desmatamen­to nesse bioma Ana Paula Valdiones coordenado­ra do ICV

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Ascom/Aprosoja Máquinas atuam em propriedad­e rural com soja em Mato Grosso

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