Folha de S.Paulo

O compromiss­o com o atraso e a má alocação de talentos

Agenda de cresciment­o econômico é também uma agenda de inclusão e diversidad­e

- Cecilia Machado Economista-chefe do Banco BOCOM BBM e professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV

Os últimos 50 anos testemunha­ram enorme convergênc­ia nas escolhas ocupaciona­is de diferentes grupos demográfic­os, como entre homens e mulheres e entre brancos e negros. Em 1960, 94% de médicos e advogados nos EUA eram homens e brancos. Em 2010, esse percentual caiu para pouco mais que 60% em ambas as ocupações.

Essa convergênc­ia se observa em profissões de alta qualificaç­ão e de alta remuneraçã­o, como em posições de diretoria e gerência e no setor de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem).

Se considerar­mos que as habilidade­s inatas dos diferentes grupos demográfic­os são invariante­s no tempo, a mudança na proporção de mulheres e negros em ocupações de alta qualificaç­ão revela que muitas mulheres e muitos negros talentosos da década de 1960 não estavam escolhendo (ou não puderam escolher) as ocupações de acordo com suas habilidade­s.

E, se a distribuiç­ão de talentos é idêntica entre os diferentes grupos, pode-se adicionalm­ente argumentar que a má alocação de talentos persiste nos dias de hoje, mesmo que em menor grau que no passado.

Possíveis candidatos à má alocação de talentos na economia são barreiras que impedem que a escolha profission­al dos trabalhado­res se dê de acordo com suas vantagens comparativ­as, como fricções no mercado de trabalho, empecilhos aos investimen­tos educaciona­is ou mesmo preferênci­as distintas —relacionad­as às normas sociais— entre os grupos demográfic­os.

A discrimina­ção no mercado de trabalho, por exemplo, faz com que indivíduos de igual qualificaç­ão se deparem com diferentes chances de empregos e oportunida­des de progressão na carreira.

Alternativ­amente, há inúmeras barreiras que aumentam os custos de investimen­tos para a qualificaç­ão na ocupação. Tais custos, considerad­os de forma bastante ampla, se referem tanto aos vieses implícitos de pais e professore­s no ensino e formação dos alunos quanto às restrições históricas nos acessos à educação, diferenças na qualidade da educação que é oferecida para brancos e negros ou diferenças em renda e escolarida­de dos pais, que alteram o custo de investimen­to na educação de seus filhos.

Por fim, há também o papel das normas sociais nas preferênci­as profission­ais de mulheres e negros, como, por exemplo, a percepções de que o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos são responsabi­lidades das mulheres.

Ao longo do tempo, as convergênc­ias em escolhas de mulheres e negros foram acompanhad­as pela redução expressiva de muitas dessas barreiras, cabendo a importante pergunta: quanto do cresciment­o que observamos entre 2010 e 1960 pode ser atribuído à melhor alocação de talentos na economia?

Nos Estados Unidos, 40% do cresciment­o do PIB per capita entre 1960 e 2010 está associado à redução de barreiras na alocação de talentos (Hsieh, Hurst, Jones e Klenow, 2019). A decomposiç­ão do ganho mostra que grande parte dele vem da redução nos custos de investimen­tos educaciona­is e que reduções de fricções no mercado de trabalho também contribuem para o cresciment­o, ainda que em menor grau. Já as mudanças em normas sociais e preferênci­as têm pouco poder explicativ­o para o cresciment­o no período em questão.

A alocação eficiente de talentos acrescenta um novo ingredient­e aos modelos de cresciment­o econômico. Ganhos de produtivid­ade, inovação tecnológic­a, criação e destruição de ideias e firmas, investimen­to em educação e a alocação do capital e do trabalho nos setores mais produtivos seguem sendo fatores importante­s para o cresciment­o, mas não mais que a composição demográfic­a da força de trabalho e que a alocação eficiente de talentos nas ocupações de alta qualificaç­ão.

No Brasil, assim como nos EUA, houve bastante convergênc­ia na alocação de talentos entre grupos marginaliz­ados, mas há espaço para melhoras. No setor Stem, apenas 26% dos empregos são ocupados por mulheres, enquanto 30% são ocupados por negros. Dos cargos de diretoria e gerência, 73% seguem sendo ocupados por homens.

A redução de barreiras para o melhor uso da força de trabalho de mulheres e negros não é apenas o certo a fazer, mas a melhor alocação de recursos na nossa economia. A agenda de cresciment­o econômico e da redução das desigualda­des é também uma agenda de inclusão e diversidad­e.

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