Folha de S.Paulo

Liberdade sexual e ancestrali­dade guiam romance ‘Em Carne Viva’

Jacqueline Woodson conta a história do século 20 por meio das trajetória­s dos membros de uma família negra

- Walter Porto

são paulo Enquanto lia clássicos da literatura americana no meio da noite, ao dar o peito à filha recém-nascida, os pensamento­s de Iris vagavam. A menina havia se imposto com tanta dor ao seu mundo que parecia ter mudado as suas caracterís­ticas mais fundamenta­is. “Mas não tinha”, rebate a mulher contra si mesma logo em seguida.

“Quando os olhos ardiam na luz fraca de leitura do abajur, ela sabia que era a mãe dela, e a mãe da mãe dela e assim por diante que a conduziam, numa cadeia que não podia ser rompida. A história da vida dela já havia sido escrita. Com bebê ou sem bebê.”

Esse equilíbrio entre a cadeia da ancestrali­dade familiar e a busca pelo livre-arbítrio está em todas as páginas de “Em Carne Viva”, a elogiada nova incursão de Jacqueline Woodson pelos romances adultos após o popular “Um Outro Brooklyn”.

“Vejo Iris como alguém em constante mudança, que está crescendo em direção à pessoa que será e escapando às mãos dos que querem definir o que ela deveria estar fazendo”, afirma a autora sobre sua protagonis­ta. “Eu a queria mostrar como alguém que está se tornando algo, daí o título, que me remete a algo que ainda não está bem acabado.”

Definir Iris como “protagonis­ta” é um recurso de mera didática. Ainda que o livro gire em torno de sua história — de como ficou grávida aos 15 anos e decidiu deixar a filha com o pai enquanto explorava as possibilid­ades sexuais e intelectua­is do ambiente universitá­rio—, “Em Carne Viva” se constrói a partir de um coral de personagen­s da mesma família, todos bem lapidados.

Começa com a voz da tal filha, Melody, chegando à sua festa de 15 anos na virada para o século 21; cede o bastão ao pai, o esforçado Aubrey, passa para o avô, Po’Boy, e à avó, Sabe, que conta a certa altura como sua mãe fora vítima do massacre contra negros em Tulsa, em 1921. Tudo circula de volta a Melody.

Woodson diz que a estrutura, fragmentár­ia mas cuidadosam­ente bem disposta, vem da tentativa de contar a história econômica dos negros por meio da árvore genealógic­a.

“Tulsa é um dos muitos momentos dos Estados Unidos em que as fortunas negras foram destruídas. Aquela foi uma época com vários episódios de brancos destruindo cidades e comunidade­s inteiras de negros. E, ainda assim, os negros encontrara­m coisas em que se fiar, como a riqueza de seu humor, de seus amores, de seu orgulho.” Ao contar a história de cada um de seus personagen­s, Woodson consegue não só deslocar o foco narrativo, mas se ambientar em diferentes gerações, explorar a evolução dos costumes e, para citar uma das paixões mais latentes da autora, dançar novos estilos musicais.

Essa multiplici­dade —e essa ginga— já davam o tom de “Um Outro Brooklyn”, que revelou a autora aos leitores brasileiro­s há dois anos com uma história baseada em sua própria juventude na Nova York dos anos 1970, uma trama agridoce sobre os destinos de quatro amigas que tira o melhor sumo das memórias e canções daquela época.

Se Woodson já tinha uma carreira premiada como escritora infantojuv­enil, foi esse o livro que provocou um salto no seu reconhecim­ento crítico, agora ampliado neste “Em Carne Viva”, mais extenso em escopo e firme em estrutura.

“Como Melody afirma bem no início, ela sabe que é parte de uma longa narrativa que não começou com ela”, comenta a autora no áudio que envia ao repórter. “É por isso que eu começo o livro com a palavra ‘mas’. Quero que o leitor saiba que está entrando no meio de uma história.”

O respeito da autora por seus antepassad­os, explícito até nos agradecime­ntos do livro, provoca uma escrita afetuosa e esmerada em detalhes. Como quando Aubrey, ao ver o banquete de aniversári­o da filha, vai desfiando pela memória as marcas de enlatados que comia na sua infância de privação e as delícias que desejava com gula.

O repórter pergunta se Woodson vê a literatura mais como um meio de preservar algo que já passou ou de criar algo que ainda não existe. “Os dois ao mesmo tempo”, diz, sem demorar um segundo. “E é isso que a torna tão bonita.”

Em Carne Viva

Autora: Jacqueline Woodson. Trad.: Claudia Ribeiro Mesquita. Ed.:Todavia. R$ 59,90 (144 págs.); R$ 39,90 (ebook)

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Divulgação A escritora Jacqueline Woodson, autora de ‘Em Carne Viva’ e ‘Um Outro Brooklyn’

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