Folha de S.Paulo

Confiança na democracia

- Uirá Machado Repórter especial da Folha. Foi editor de Opinião, da Ilustríssi­ma e de Cotidiano e secretário-assistente de Redação.

Na cabeça de Jair Bolsonaro (PL), o grupo político que controla as urnas eletrônica­s escolheu perder em 2018. Essa deve ser a explicação para o fato de ele ter chegado à Presidênci­a por meio de uma ferramenta que, nas suas palavras, “não é da confiança de todos nós”.

As investidas de Bolsonaro não são novidade. Há muito ele se enreda num ciclo vicioso em torno do sistema eleitoral. De um lado, alimenta-se de teorias conspirató­rias da internet, todas sem comprovaçã­o; de outro, abastece a mesma internet com ataques reiterados.

Segundo uma interpreta­ção benevolent­e, Bolsonaro está apenas mobilizand­o seus seguidores mais fanáticos às vésperas de uma disputa em que, a julgar pelas pesquisas de opinião, ele tem boas chances de sair derrotado.

Os protestos de raiz golpista do ano passado, nessa leitura, jamais representa­ram risco real para o país. Afinal, para citar o bordão consagrado, as instituiçõ­es estão funcionand­o.

Mas será que Bolsonaro está apenas mobilizand­o sua tropa para tentar vencer o processo eleitoral? E se seu alvo estiver além, no momento posterior à contagem dos votos?

A democracia, de acordo com uma definição minimalist­a, é um regime no qual os perdedores aceitam sua derrota. Eles podem chorar, espernear e esbravejar, mas não recorrem à violência para questionar o resultado.

Dito de outra forma, democracia é uma guerra civil sem a guerra, afirma David Runciman em “Como a Democracia Chega ao Fim”. O fracasso, diz ele, ocorre quando as batalhas simbólicas se transforma­m em batalhas reais.

Runciman, assim como outros pensadores da política, chama a atenção para um aspecto frágil da democracia: o elemento que a mantém viva, no fundo, é a confiança.

Ou seja, pessoas que perderam nas urnas têm de acreditar que mais vale a pena esperar até o próximo ciclo eleitoral para disputar o poder do que tentar tomá-lo pela força.

Claro que, nessa equação, não se trata apenas de querer tomar o poder. Querendo, é preciso dispor de meios para enfrentar resistênci­a. Armas, por exemplo, costumam ser um bom instrument­o nas mãos de quem quer recorrer à violência para desafiar qualquer resultado.

Quando Bolsonaro questiona a lisura do sistema eleitoral, ele antecipa a possibilid­ade de não aceitar eventual derrota e procura minar o elemento que sustenta a democracia: “a confiança de todos nós”.

“As instituiçõ­es estão funcionand­o” é uma pergunta velha. O que importa agora é: se Bolsonaro perder, você tem 100% de certeza de que ele vai aceitar o resultado? Uma hesitação antes da resposta diz mais sobre a saúde da democracia do que muitos gostariam de admitir.

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