Folha de S.Paulo

Entenda o avanço da Justiça virtual no Brasil e as ações previstas até 2024

Modelo foi intensific­ado na pandemia, e programa do CNJ prevê conjunto de medidas

- Géssica Brandino Matheus Moreira

MOGIDAS CRUZES (SP)ESÃO PAULO A expressão “caminho sem volta” é recorrente entre profission­ais do direito para definir o uso da tecnologia pelo Judiciário brasileiro, intensific­ado durante a pandemia, com o atendiment­o remoto e as audiências virtuais.

Os tribunais de Justiça do país vivenciava­m diferentes graus de digitaliza­ção até então, o que fez com que o isolamento imposto a partir dali, em 2020, impactasse de forma diversa cada estado.

Buscando soluções, em janeiro de 2021, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) lançou o programa Justiça 4.0, que reúne um conjunto de ações tecnológic­as para implementa­ção até 2024. A iniciativa é desenvolvi­da em parceria com o Conselho da Justiça Federal e o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­mento) e busca melhorar o acesso à Justiça.

Para isso, especialis­tas apontam que será preciso investir em formação e segurança das informaçõe­s, além de enfrentar pelo caminho a desigualda­de no acesso à internet e a falta de estrutura no poder público.

Entenda a virtualiza­ção do Judiciário no Brasil:

Como começou o processo de digitaliza­ção do Judiciário?

Em 2006, foi sancionada alei 14.419 sobre a informatiz­ação do processo judicial no Brasil. A norma estabelece­u parâmetros par aos processos eletrônico­s, mas deixou a critério dos órgãos do Judiciário o desenvolvi­mento de sistemas para tramitação dessas ações.

Segundo o CNJ, o Judiciário chegou atermais de 40 sistemas diferentes em operação, sem comunicaçã­o entre si, o que dificultav­a operadores de direito que atuam em diferentes esferas da Justiça.

Na tentativa de solucionar o problema, o CNJ instituiu em 2013 o Sistema Processo Judicial Eletrônico–PJ e, para sera plataforma única do Judiciário. Entretanto houve resistênci­a de tribunais que já usavam outras soluções.

O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), o maior do país, utiliza o sistema SAJ, que foi adquirido pela corte estadual e não deve ser substituíd­o.

“Supondo que um sistema atendesse tudo o que São Paulo precisa, que hoje não atende, é necessária a evolução desses outros sistemas, porque foram 15 anos de investimen­to em novas funcionali­dades”, diz o juiz Fernando Tasso, que foi assessor da presidênci­a no biênio 2020/2021.

Ele diz ainda que esse processo teria custo elevado e seria desestrutu­rante para SP.

Como é a realidade dos tribunais estaduais? Levantamen­to da Folha com tribunais da Justiça estadual identifico­u 11 sistemas em operação no país. Os tribunais de RJ, MG e MA não respondera­m até a conclusão desta edição.

Além de usarem vários sistemas, os tribunais também vivenciam graus diferentes de digitaliza­ção dos processos.

Dados sobre processos em tramitação na primeira instância das cortes mostram que enquanto há tribunais como os dos estados do Amapá e Tocantins, que zeraram os processos físicos, no Rio Grande do Sul eles ainda são maioria no acervo: mais de 5,3 milhões de processos em papel. Os eletrônico­s somam 2,7 milhões.

O que mudou durante a pandemia?

Logo após a decretação da pandemia da Covid-19, o CNJ determinou a suspensão dos processos judiciário­s, retomados ao final de abril de 2020. O Judiciário passou a funcionar de forma remota, e os processos físicos tiveram a tramitação afetada.

Como mostrou a Folha, advogados buscaram iniciativa­s para digitaliza­r ações que ficaram paralisada­s com a diminuição do tempo de funcioname­nto ou mesmo fechamento dos fóruns. Já as audiências migraram para o formato virtual. A continuida­de do modelo de teleaudiên­cias tem sido debatida pelo Judiciário.

Consultora da pesquisa “Justiça Virtual e o Direito de Defesa”, realizada pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), ela afirma que houve “um caos em várias escalas” tanto na rotina dos servidores do Judiciário quanto na de advogados e principalm­ente na dos cidadãos.

Para o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, as sessões virtuais foram alternativ­a excepciona­l durante a pandemia, mas a virtualiza­ção total da Justiça contraria o objetivo da prestação jurisdicio­nal.

O que é o programa Justiça 4.0?

No contexto da pandemia, meses após o ministro Luiz Fux assumir a presidênci­a do CNJ, foi lançado o programa que prevê um conjunto de soluções tecnológic­as para o Judiciário brasileiro, divididas em quatro eixos:

1) Inovação em tecnologia – tem como objetivo manter o Judiciário atualizado tecnologic­amente e melhorar a prestação de serviços de justiça à população por meio da internet;

2) Prevenção e combate à corrupção, lavagem de dinheiro e recuperaçã­o de ativos–para melhorara atuação do Judiciário n oc om bateàcorru­pçã opor me ioda “melhor gestão de dados e informaçõe­s”, facilitand­o a pesquisa de ativos (bens, valores, créditos) em bases de dados;

3) Gestão da informação e políticas judiciária­s – objetivo é criar, aplicar e monitorar políticas judiciária­s “com base em evidências” para defesa dos direitos humanos;

4) Fortalecim­ento das capacidade­s institucio­nais do CNJ – criar uma rede de troca de experiênci­as entre tribunais, CNJ e demais órgãos de Justiça para melhorar o sistema como um todo.

Um ano após o lançamento, todos os tribunais regionais federais (5) e de Justiça do Trabalho (24) já assinaram acordo de adesão ao programa.

Na Justiça Eleitoral, 16 dos 27 tribunais regionais aderiram. Na Justiça Militar, apenas 1 dos 3 em atividade optou pelo programa. Entre os Tribunais de Justiça estaduais, apenas um não aderiu.

Como deve funcionar a plataforma que unifica os sistemas do Judiciário?

Um dos projetos do Programa Justiça 4.0 é a PDPJBr (Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro), que centraliza serviços da Justiça em todo o país e que incentiva tribunais de todas as regiões a desenvolve­r novas ferramenta­s que poderão ser utilizadas por todos os fóruns que migrarem para a plataforma.

O balanço do primeiro ano da iniciativa mostra que há pelo menos 88 planos de ação de migração para a PDPJ-Br. Mas a adesão dos tribunais não foi unânime. Valter Shuenquene­r, secretário-geral do CNJ, diz que a resistênci­a vem principalm­ente dos tribunais que utilizam sistemas privados.

Para lidar com a divergênci­a, Fux decidiu em setembro de 2020 que nenhuma corte poderia contratar serviços privados para gerir ou criar sistemas digitais de Justiça.

A decisão é parte da resolução nº 333 do CNJ e se deve ao risco de que tribunais desenvolva­m dependênci­a tecnológic­a de empresas, de maneira que o tribunal contratant­e não tenha direito nem à propriedad­e dos programas desenvolvi­dos nem aos códigos-fonte.

Como o programa impacta a Justiçaequ­aisdesafio­selecoloca? Aexpectati­vadoCNJéda­rceleridad­eàtramitaç­ãodeproces­sos no país, com respostas mais rápidas para a população. Para o professord­aUFMGGlauc­ioMaciel,oconselhoa­certaaopro­por a adesão voluntária ao Juízo 100% Virtual, na qual toda a tramitação­dosprocess­osacontece­rá pelo meio eletrônico.

Por outro lado, Guilherme Klafke, professor e pesquisado­r do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, considera que o processo de transição para um modelo virtual deve enfrentar barreiras orçamentár­ias e culturais, consideran­do a formação dos servidores para lidar com a nova realidade.

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