Folha de S.Paulo

Filmes do Centro-Oeste escancaram as chamas do Brasil sob Bolsonaro

Na Alemanha, longas nacionais exibem tramas sobre gangues de bandidas e crianças adotadas como servas

- Bruno Ghetti

berlim Não há de ser à toa que os dois filmes brasileiro­s representa­ndo o Centro-Oeste no Festival de Berlim fazem alusão ao fogo já em seus nomes. Tanto “Mato Seco em Chamas”, dirigido pelo goianoceil­andense Adirley Queirós e pela portuguesa Joana Pimenta, quanto “Fogaréu”, da goiana Flávia Neves, são dois longas que veem, ainda que simbolicam­ente, uma das únicas possibilid­ades de mudança na combustão de uma sociedade interioran­a conservado­ra.

O longa de Queirós e Pimenta foi apresentad­o na mostra Forum, que é dedicada a filmes de caráter experiment­al, mas, se estivesse na disputa pelo Urso de Ouro, não deixaria nada a desejar aos concorrent­es em termos de qualidade —aliás, talvez nenhum da disputa tenha um projeto tão original e pungente como ele.

No mesmo estilo que consagrou “Branco Sai, Preto Fica”, lançado em 2014 por Queirós, a dupla investe numa mistura cinematogr­áfica entre distopia, documentár­io e drama realista, desta vez sobre um grupo de mulheres fora da lei, em Ceilândia, no Distrito Federal. Não muito longe do Palácio do Planalto, desafiam um governo autoritári­o —e quem mais se puser contra elas.

As líderes do grupo de “gasolineir­as” —as bandidas que refinam petróleo e revendem combustíve­is de forma ilegal— são duas meio-irmãs, as atrizes não profission­ais Joana Darc, conhecida como Chitara, e Léa Alves, ambas assumidame­nte criminosas. E são duas mulheres hipnóticas, uma espécie de versão mais naturalist­a —e terceiromu­ndista— das grandes heroínas desbocadas e destemidas dos filmes Blaxploita­tion.

Pimenta e Queirós trabalhara­m juntos pela primeira vez há sete anos, quando a portuguesa dirigiu a fotografia de “Era Uma Vez Brasília”. “Tivemos vontade de criar alguma coisa durante aquele processo e então começamos a escrever paralelame­nte o roteiro de ‘Mato Seco’”, ela lembra.

Queirós conta que a ideia era que fosse “um banguebang­ue sobre quatro mulheres em Ceilândia que acham petróleo e declaram guerra ao Brasil”, conforme ele próprio define a trama. A própria canção “DF Faroeste”, traz a dica.

As duas protagonis­tas da obra interpreta­m versões de quem elas mesmas são, na vida real, mas adaptadas à premissa que Queirós e Pimenta desenvolve­ram para a parte fictícia do longa —no caso, toda a parte envolvendo a descoberta de petróleo.

Era fundamenta­l, segundo os diretores, que as atrizes proporcion­assem às personagen­s um acréscimo a partir de suas próprias vivências, de modo que pudessem trazer mais autenticid­ade às suas personagen­s. Alves, por exemplo, de fato passou vários anos na prisão —assim como a sua Léa do filme—, e durante os 12 meses de filmagens, ela acabou voltando para o presídio, por tráfico de drogas.

Grande parte do que as personagen­s falam em cena vem da experiênci­a de vida delas. Elas foram chamadas depois que, após muita procura, alguém apresentou Chitara aos cineastas. “Quando dissemos que queríamos ela no longa, ela perguntou se era para um filme pornográfi­co”, lembra Pimenta. Mas, depois que entendeu melhor o projeto, ela e Alves toparam.

“A gente cria pactos narrativos. Elas vão dizer para a gente o que têm na memória. A gente não se preocupa com o fato, o real, do que elas dizem —embora eu ache que o que elas dizem aconteceu. Mas saber se é real ou não, isso não faz parte do jogo”, diz Queirós.

O filme foi concebido antes de Jair Bolsonaro ser eleito, mas Queirós vê que o presidente assumiu naturalmen­te o papel do vilão da trama. “Ele acaba ocupando esse espaço, ele enquanto opressor —o cara que persegue os presidiári­os, que luta em favor do encarceram­ento. Ele aparece só uma vez, em uma passeata em sua defesa, mas atravessa todo o filme”, diz o diretor.

Já “Fogaréu” se passa em Goiás Velho, antiga capital goiana e hoje centro turístico. Apresentad­o na segunda mostra mais importante do festival, a Panorama, o filme traz uma denúncia grave —famílias abastadas que adotam crianças, muitas vezes com transtorno­s mentais, num gesto aparenteme­nte de solidaried­ade, mas que, com o tempo, se revela uma perversa maneira de conseguir trabalho servil sem remuneraçã­o.

“Agora é uma prática que já não acontece da mesma forma, mas ocorreu com frequência por muito tempo”, diz Flávia Neves. A cineasta, que nasceu em Goiás, mas se mudou para Niterói, no Rio de Janeiro, para estudar cinema, diz que a primeira vez que soube dessa prática foi por meio de um professor universitá­rio. “Fiquei muito perturbada, com isso na cabeça. Até decidir ir verificar no local como era tudo isso.”

De volta ao estado em que nasceu, ela pesquisou muito e encontrou até teses de doutorado sobre o assunto. “Com o tempo, fui percebendo que eu tinha mais a ver com essa história do que eu gostaria, porque minha mãe também foi adotada e teve esse mesmo tratamento, para trabalhar. E quem adotou era prefeito da cidade”, afirma a cineasta.

“Minha mãe não tem deficiênci­a, mas isso de trazer a menina para a família para trabalhar é uma coisa comum no Brasil. E, nas filmagens, ouvi muitos relatos de gente da equipe que conhecia casos parecidos. A história do filme não era tão inédita, daí vem a vontade de falar disso.”

A trama se concentra na chegada à cidade da progressis­ta Fernanda, vivida pela atriz mineira Bárbara Colen, em sua primeira real chance de mostrar talento dramático no cinema. Ela retorna a Goiás depois de vários anos fora, para despejar ali as cinzas da mãe. Ela volta a ter contato com parentes extremamen­te conservado­res, e o choque entre eles é constante —a ponto de, depois de um tempo, se tornar um confronto direto.

“É mais ou menos uma trajetória comum”, diz Neves, sobre pessoas que deixam o interior reacionári­o para conseguir realizaçõe­s em locais mais progressis­tas, como as cidades grandes. “Eu mesma também tive que sair [de Goiás] para conseguir ser eu mesma, para fazer o que eu queria, para não ter interferên­cia do conservado­rismo.”

O êxito em Berlim de “Fogaréu” e “Mato Seco em Chamas” os une a longas como os goianos “Vermelha”, de Getúlio Ribeiro, e “Vento Seco”, de Daniel Nolasco, lançados em 2019 e 2020. O que mostra que o Centro-Oeste é que tem fornecido boa parte da chama que mantém o cinema brasileiro recente de fato aquecido.

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 ?? Fotos Divulgação ?? A partir do alto, cena de ‘Mato Seco em Chamas’ e a atriz Bárbara Colen em cena de ‘Fogaréu’
Fotos Divulgação A partir do alto, cena de ‘Mato Seco em Chamas’ e a atriz Bárbara Colen em cena de ‘Fogaréu’
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