Folha de S.Paulo

Tecnologia do furdunço

Não existe contradiçã­o entre o balé e a bagunça

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos

Duvido que tenha alguma língua no mundo com tanta palavra pra bagunça quanto a nossa. E o léxico não vem do grego ou do latim: nossos termos pra desordem nasceram por aqui, às vezes sem pai nem mãe. Bagunça, por exemplo: tem pais desconheci­dos, assim como furdunço e fuzuê. O Brasil inventou a fuzarca —ou talvez o contrário.

Auê, fuzuê, frege, bafafá, rebuliço. Qualquer falante do português saberá do que trata essas palavras, mesmo que nunca as tenha ouvido. Escarcéu e banzeiro vieram do mar. O primeiro é a onda gigante, o segundo é o mar agitado, e ambos passaram a designar agitação de gente que se comporta como o mar.

Arruaça quem faz são os outros —e geralmente quem acusa é a imprensa. Quando a polícia chega, o que podia ser um tumulto vira quebra-pau. Perceba que, quando a confusão vira porradaria, ela ganha um hífen: se transforma num quebra-quebra, um pega-pra-capar, umdeus-nos-acuda,umsalve-sequem-puder, uma casa-da-mãejoana, vulgo casa-da-sogra (pobre da sogra chamada Joana).

Gosto das palavras que servem pra designar ao mesmo tempo uma forma de confusão e uma forma de comida —sururu, sarapatel, angu de caroço. Grande parte da nossa culinária tem origem na bagunça. Não é só o prato que parece um murundum, mas também a ocasião em que se come: não se degusta um sururu sem promover um sarapatel, e vice-versa. Galhofa já significou banquete, até virar sinônimo de bagunça, e hoje virou humor fácil —no teatro, quando o comediante perde a mão, alerta-se, na coxia: “Cuidado com a galhofa”.

Tem ritmo que leva a confusão no nome: pagode, forró e frevo já significar­am balbúrdia, antes de ela se organizar em notas musicais. Até hoje carregam a confusão em que nasceram, e, assim que as notas soam, logo se promove um furdunço. Um pagode, quando tocado sozinho, não é um pagode, mas outra coisa. Pra virar pagode precisa de alguém atrapalhan­do quem toca. Forró precisa de pelo menos três pessoas, uma tocando e duas dançando. Frevo precisa de uma cidade inteira.

Dominamos, como ninguém, a tecnologia do furdunço. Tudo o que funciona, no Brasil, do forró ao sarapatel, conseguimo­s através de algazarra. Toda tentativa de moralizar o galinheiro saiu pela culatra: a ordem só levou ao regresso. O progresso só alcançamos na fuzarca —sem cair na galhofa jamais. Não existe contradiçã­o entre o balé e a bagunça.

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Catarina Bessel

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