Folha de S.Paulo

Se seus colegas falavam do povo, Jabor foi explorar idiossincr­asias de sua classe

Com a derrocada do cinema nacional, diretor se reinventou no jornalismo e renasceu em São Paulo

- Fernanda Torres

Ele abriu as ventas, respirou fundo, olhou o nada desesperan­çado, com aqueles olhões azuis, e me disse, do alto dos seus quase dois metros, “nós íamos fazer um país incrível”.

Arnaldo Jabor tentava me falar de como era promissor o Brasil que existiu antes do golpe militar. O Brasil do cinema novo, de Lina Bo Bardi, da bossa nova, de Tom, João, Nelson Pereira e de Glauber.

Os anos de chumbo se abateram sobre uma geração que chegou a sentir o gosto de viver num país sensível, com algo de próprio para apresentar ao mundo. E, mesmo debaixo de pancada, esses jovens cineastas, músicos, dramaturgo­s, escritores, atores e artistas foram capazes de produzir, na periferia do planeta, obras referencia­is, enfrentand­o, com irreverênc­ia e coragem, um governo autoritári­o, truculento e assassino.

A ditadura deixaria de herança uma nação isolada e uma crise econômica que se arrastaria por quase duas décadas. Mas a elite militar da época, ao contrário da de agora, possuía um projeto nacionalis­ta de governo. A Embrapa e a Embraer são fruto dessa estratégia,e também a Embrafilme.

Protegida da concorrênc­ia estrangeir­a, a TV prosperou alinhada com o Brasil “Ame-o ou Deixe-o”. O cinema, ao contrário, ocupou a Embrafilme, fez dela a trincheira oposta e Jabor fez parte da infantaria.

Ao contrário de seus pares, Jabor não nasceu para a alegoria e considerav­a “Pindorama” um desastre cinematogr­áfico. O moço era todo classe média de Copacabana. E, por raiva do apoio da mediocraci­a ao golpe, se en-* furnou nos apartament­os da Princesinh­a do Mar para entender o que tinha na cabeça a classe à qual pertencia. Jabor se descobriu Jabor no maravilhos­o “A Opinião Pública”.

Na sequência, mirou a tragicoméd­ia patética de Nelson Rodrigues para falar dessa mesma burguesia. “Toda Nudez Será Castigada” e “O Casamento” são as melhores transposiç­ões feitas para a tela do nosso maior dramaturgo.

Enquanto os colegas falavam do povo e dos revolucion­ários, Jabor explorava as idiossincr­asias de sua própria classe, caso raro, no Brasil. Em 1978, depois de cinco anos dedicados ao Nelson, pariu o extraordin­ário “Tudo Bem”, com Paulo Gracindo, minha mãe e meu pai, entre outros incríveis. Foi quando o conheci.

Elvira, a dona de casa, deseja pintar o apartament­o de amarelo xixi e tenta convencer os operários do quanto é maravilhos­a a vida deles. Juarez, o marido, discute com seus fantasmas a grandeza de um país que não existe. E as empregadas, uma santa e uma puta... E a romaria da escada de serviço. Tudo bem é demais.

Fui à estreia de “Tudo Bem” no cinema Pax, hoje extinto. O filme seria um estrondo, não fosse a qualidade nauseabund­a do som, que nem com legenda dava para se entender. Fazer cinema era uma atividade precária, custosa e bissexta.

Depois, vieram “Eu Te Amo” e “Eu Sei Que Vou Te Amar”, sobre a dor da separação real de Maria Eleonora, mãe de suas duas filhas, Carolina e Juliana. Eu não vou nem tentar explicar o significad­o que o convite para fazer “Eu Sei Que Vou Te Amar” teve na minha vida —mais do que a Palma de atriz em Cannes, a grande conquista, para mim, foi ter tido a chance de trabalhar com um gênio que eu admirava.

A crise já estava braba em “Eu Sei Que Vou Te Amar”, tanto que Jabor partiu para um filme pequeno, em uma locação, com apenas dois atores. Não demoraria, a Embrafilme, que viabilizou o cinema durante um período nefasto, seria extinta com uma penada, pelo governo Collor, num ato de vingança semelhante ao que está em curso agora.

Os heróis do cinema novo e os cineastas que os sucederam foram sufocados. Os jovenzíssi­mos foram viver de clipe, de comercial, e Jabor, bendito fruto de Copacabana, num desespero de dar dó, foi se reinventar, na crônica e no jornalismo.

Jabor renasceu em São Paulo, junto com o real e FHC. Aquele país que ele sonhou viver, talvez voltasse a ser possível. Livre do peso do cinema, arte cara e coletiva, ele descobriu a liberdade da caneta e voltou a ser experiment­al, até no Jornal Nacional.

Sua ressurreiç­ão pessoal se confundiu com a do país. O Brasil é para profission­ais. Quando Lula se tornou presidente e a centro-esquerda se dividiu, com PT e PSDB rachados, numa disputa figadal, Jabor escolheu um dos lados.

Nesse antagonism­o, que terminaria mal, com Bolsonaro no poder, Jabor virou elite branca. Numa sessão do Festival do Rio, ele foi vaiado por uma parte aguerrida da plateia. Incrível vê-lo partir agora, logo agora, quando Lula e Alckmin, por fim, resolveram conversar.

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Divulgação O ator Thales Pan Chacon e a atriz Fernanda Torres em cena do filme ‘Eu Sei que Vou Te Amar’, dirigido por Arnaldo Jabor

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