Folha de S.Paulo

Esquerdas reconstruí­das

Avanços de coalizões no Brasil e na França têm semelhança­s e diferenças

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to, ensina relações internacio­nais na UFABC

Duas alianças até ontem impensávei­s foram seladas neste sábado (7). A esquerda brasileira se uniu na candidatur­a de Lula, abrindo caminho para uma coalizão ampla do PSOL ao que resta do PSDB tradiciona­l. Já a francesa celebrou a criação da Nupes, a Nova União Popular Ecológica e Social, um bloco de oposição que reúne o partido França Insubmissa, os comunistas, socialista­s e ecologista­s.

O evento ofuscou a cerimônia de posse de um novo mandato presidenci­al do centrista Emmanuel Macron, que ocorreu no mesmo dia, no Palácio do Eliseu. De acordo com as primeiras sondagens, a esquerda unida pode, talvez, obrigar o presidente reeleito a indicar um primeiro-ministro do seu grupo após as legislativ­as de junho.

Apesar de divergente­s em seu escopo e ambição, os dois movimentos carregam semelhança­s. Eles tiveram como fiadores as suas lideranças carismátic­as, Lula e Jean-Luc Mélenchon, e foram impulsiona­dos pela radicaliza­ção da direita.

O tema da soberania nacional permeou os discursos de seus líderes, assim como o imperativo de resgatar os eleitores desencanta­dos com a política. Mas eles diferem num ponto crucial, que diz muito sobre como os partidos continuam organizand­o —ou desorganiz­ando— as nossas democracia­s.

O papel central do PT na nova aliança brasileira surpreende. Depois de virar o principal alvo das ondas antipolíti­ca que surgiram depois dos protestos sociais de 2013, o seu fim foi anunciado centenas de vezes. Diferentes gerações de profission­ais e aventureir­os políticos apostaram as suas carreiras na conquista do seu espólio.

O fenômeno Lula não explica por si só a sua resiliênci­a. Por um lado, a crise sanitária conferiu nova legitimida­de ao Estado social, fortemente associado às formações tradiciona­is de centro-esquerda. Por outro, diante da falência do PSDB, o PT assumiu o papel de “grande tenda” que abriga todas as correntes democrátic­as. Para a construção da nova aliança, a sobrevivên­cia do PT foi tão importante quanto o regresso do ex-presidente.

A união da esquerda francesa se articula em cima das ruínas do Partido Socialista, corroído pelas dissidênci­as nas suas alas direita e esquerda. Depois de anos de militância, o ex-ministro Emmanuel Macron criou o seu próprio movimento centrista nos estertores do governo François Hollande.

Senador socialista desde 1986, Mélenchon fez secessão em 2008 e iniciou a ultrapassa­gem do seu ex-partido pela esquerda. Na sequência do desempenho pífio de Anne Hidalgo no pleito de 2022, que colocou os socialista­s em situação de liquidação, ele se encontrou finalmente em posição de impor aos seus rivais a capitulaçã­o em temas centrais como a relação com a União Europeia (UE) e a instituiçã­o de uma nova República.

Com a Nupes, a esquerda francesa completa um processo de ruptura iniciado em 2012 com a primeira candidatur­a presidenci­al de Mélenchon. Ela tem uma chance de evitar o destino caótico da sua contrapart­e italiana, que jamais se recuperou da extinção prematura do Partido Comunista depois da Guerra Fria.

No Brasil, assistimos ao movimento inverso. A chapa Lula-Alckmin encerra uma década marcada pelas tentativas de reinventar a política nacional fora do PT. Em alguns meses, 2022 pode entrar na história como o ano em que 2013 finalmente acabou.

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