Folha de S.Paulo

Bolsonaro acumula dribles ao teto de gastos e quer mais

Regra fiscal, de 2016, já sofreu ao menos 12 investidas durante governo atual

- Idiana Tomazelli

Brasília Apenas cinco meses depois de duas emendas constituci­onais ampliarem em quase R$ 115 bilhões o limite do teto de gastos para 2022, ano eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro (PL) deu mostras públicas de que o apetite por aumento de despesas ainda não se esgotou.

O chefe do Executivo defendeu mudanças na regra para ampliar investimen­tos públicos, algo hoje inviável dentro dos limites estabeleci­dos pelo teto. O espaço adicional criado recentemen­te foi logo preenchido pelo reforço nos programas sociais e pelas emendas de relator, carimbadas por aliados do Planalto para beneficiar seus redutos eleitorais.

Embora tenha sinalizado que a discussão seria feita no futuro, a postura atual do governo já tem contribuíd­o na prática para sentenciar o teto de gastos a uma nova modificaçã­o.

Como mostrou a Folha ,o Congresso Nacional pisou no acelerador das bondades e aprovou, com apoio da base do governo, uma bomba fiscal bilionária ao criar pisos salariais para profission­ais de saúde, muitos dos quais remunerado­s pelo setor público. Contrarian­do a posição do Ministério da Economia, o Palácio do Planalto não ofereceu resistênci­a às propostas.

A briga agora é para decidir quem bancará a fatura extra. No Congresso, já há defensores de uma nova mudança no teto para permitir a transferên­cia de recursos a estados e municípios para financiar o piso dos profission­ais de saúde.

“Tem que ver se é necessário ou não [flexibiliz­ar o teto]. Se for, tem que fazer”, afirma o líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA). A legenda tem a quarta maior bancada na Câmara dos Deputados. “Pela quantidade de deputados que votou, essa é a coisa mais fácil de aprovar”, diz ele sobre mudar o limite de despesas.

A facilidade com que o Congresso Nacional tem alterado o teto de gastos é um fato. Criada em 2016, a regra sofreu sua primeira alteração estrutural em setembro de 2019, quando a equipe do ministro Paulo Guedes (Economia) viu necessidad­e de uma permissão expressa para transferir a estados e municípios parte do dinheiro arrecadado com o leilão de áreas do pré-sal.

De lá para cá, já foram cinco emendas constituci­onais, em um intervalo de três anos, alterando o teto ou permitindo despesas adicionais fora dele.

As mais recentes mudaram o cálculo do limite e adiaram o pagamento de uma parte dos precatório­s (valores devidos pela União após sentença judicial definitiva).

Alguns dribles adicionais foram empreendid­os usando válvulas de escape já existentes —como quando a Economia deu aval a um crédito extraordin­ário de R$ 7,6 bilhões para capitaliza­r a Emgepron, estatal militar que fabrica embarcaçõe­s para a Marinha, no apagar das luzes de 2019. O próprio TCU (Tribunal de Contas da União) apontou a manobra, uma vez que o investimen­to na construção desses equipament­os precisaria estar dentro do limite.

Outras tentativas acabaram não vingando, como a ideia recorrente de retirar os investimen­tos públicos do alcance do teto. A proposta teve seu auge em 2020 com o Plano Pró-Brasil, que tinha como entusiasta­s as alas militar e política do governo.

Levantamen­to feito pela Folha mostra que a regra fiscal já sofreu ao menos 12 investidas por mudanças ou dribles no governo Bolsonaro —e está à beira de um 13º, caso o Congresso decida flexibiliz­á-lo para colocar os pisos salariais da saúde na conta da União.

Ao assumir o comando da Economia, o ministro Paulo Guedes defendeu em diferentes ocasiões “quebrar o piso” para não “subir o teto”, ou seja, reduzir despesas obrigatóri­as.

No primeiro ano da gestão Bolsonaro, o time econômico foi bem-sucedido ao obter a aprovação da reforma da Previdênci­a, que ajudou a controlar o ritmo de cresciment­o dessa que é a maior despesa no Orçamento federal.

No auge da pandemia de Covid-19, Guedes também obteve no Congresso a previsão de congelamen­to de salários do funcionali­smo em 2020 e 2021, o que pôs um freio no avanço do gasto com pessoal, o segundo maior da União.

As demais promessas de “quebrar o piso”, porém, ficaram no papel. Quando a equipe de Guedes tentou propor mudanças no abono salarial (espécie de 14º salário pago a trabalhado­res formais com remuneraçã­o de até dois salários mínimos), Bolsonaro rechaçou publicamen­te dizendo que não poderia “tirar de pobres para dar a paupérrimo­s”.

A proposta de reforma administra­tiva, aposta da Economia para assegurar um controle de despesas mais duradouro, ficou meses engavetada na Casa Civil e, quando finalmente foi enviada ao Congresso, não teve apoio suficiente do Planalto para avançar.

A ausência de cortes adicionais em despesas considerad­as ineficient­es torna o cenário futuro cada vez mais desafiador. As despesas discricion­árias, que incluem custeio e investimen­tos públicos, devem cair a R$ 108,2 bilhões em 2023 e desabar a R$ 76,7 bilhões até 2025, um valor muito próximo do mínimo necessário para manter a máquina em funcioname­nto.

Em avaliações reservadas, técnicos da área econômica têm o diagnóstic­o de que, independen­temente do presidente eleito em outubro, a gestão Bolsonaro acabou inviabiliz­ando a sustentabi­lidade do teto de gastos.

Ex-ministro da Fazenda e do Planejamen­to no governo Dilma Rousseff (PT), o economista Nelson Barbosa, colunista da Folha, prevê um passivo próximo a R$ 100 bilhões a ser resolvido pelo próximo presidente da República, o que incluiria a reversão do limite de precatório­s e outras despesas que estão sendo criadas pelo atual governo.

Para Barbosa, o teto de gastos teve o mérito de segurar os gastos com a folha do funcionali­smo ao não deixar espaço para pressões salariais de categorias. No entanto, ele avalia que a regra se mostrou muito inflexível.

“Toda regra muito rígida gera incentivo para ser quebrada”, diz Barbosa, fazendo a analogia de que “até panela de pressão precisa de uma válvula para não explodir”. Para o ex-ministro, a restrição excessiva gerada pelo limite, principalm­ente sobre investimen­tos, incentivou o Congresso a carimbar para si uma fatia maior do Orçamento por meio das emendas de relator.

Barbosa defende uma mudança no teto para permitir algum cresciment­o real e aplicá-lo apenas sobre as despesas correntes, com um subteto para a folha de pessoal. Para os investimen­tos, a ideia seria uma programaçã­o em bases plurianuai­s.

A combinação dessa meta de gastos com a arrecadaçã­o resultaria em uma trajetória da dívida pública. Em caso de frustração da trajetória prevista, o ajuste seria perseguido no ano seguinte —evitando a prática atual de bloqueios e contingenc­iamentos que acabam segurando o gasto nos primeiros meses e, muitas vezes, liberando no final do ano.

À frente da equipe que criou o teto de gastos, em 2016, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles faz um diagnóstic­o distinto. Para ele, o limite foi feito de forma rígida justamente para reduzir o tamanho da máquina pública, mas com um prazo determinad­o de 20 anos.

Em sua avaliação, a regra foi bem-sucedida ao reduzir a despesa como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) e resgatar a confiança de investidor­es no país.

“Minha visão é que a credibilid­ade do teto está intacta. O que está arranhada é a credibilid­ade da política fiscal”, afirma. “Com um governo entrando e seguindo o teto rigorosame­nte, ele tem o seu valor restaurado automatica­mente.”

Para Meirelles, a lista de investidas contra o teto mostra a perda de credibilid­ade da política fiscal do atual governo. Ele alerta que, se o pressupost­o para o futuro for a continuida­de da expansão dos gastos, então de fato haverá um problema. “Mas não é do teto, e sim da política fiscal.”

“O que pode ser feito? Tem que cortar despesas permanente­s, pois não há mais espaço para cortar investimen­tos”, diz o ex-ministro do governo Michel Temer (MDB). Ele argumenta que há espaço para ampliar a participaç­ão do setor privado nos investimen­tos, sobretudo em infraestru­tura.

“Toda regra muito rígida gera incentivo para ser quebrada

Nelson Barbosa ministro da Fazenda durante o governo Dilma Rousseff (PT)

“Minha visão é que a credibilid­ade do teto está intacta. O que está arranhada é a credibilid­ade da política fiscal

Henrique Meirelles ministro da Fazenda durante o governo Michel Temer (MDB)

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