Folha de S.Paulo

A variável natureza humana

A sua imperfecti­bilidade permanece como uma suspeita constante

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Notas sobre a Esperança e o Desespero’ e ‘Política no Cotidiano’. É doutor em filosofia pela USP

Natureza humana é um daqueles conceitos de que todo mundo fala mal, mas que sempre acaba sendo operaciona­l quando se quer refletir acerca de temas constantes na humanidade. Mesmo que a natureza humana seja histórica, a história parece se repetir ao seu bel-prazer.

No começo da pandemia de Covid, era comum ouvir jornalista­s —os menos capazes— e marqueteir­os —cegos pelo próprio exercício da profissão— levantarem a questão de se a humanidade não sairia melhor desse período. Agora já podemos ver o quão ridícula era essa hipótese. Dois neurônios são o suficiente para jamais considerá-la a sério.

Na história dos movimentos revolucion­ários do século 19, a natureza humana funcionou como uma barreira para qualquer tentativa de negar sua existência.

Sei bem que a teoria marxista encontra no seu elegante conceito de práxis a hipótese segundo a qual a ação social transforma o homem. Aliás, o novo homem no qual os marxistas e soviéticos diziam crer vem daí. Não me parece que isso tenha ocorrido, pelo menos no espaço de quase 200 anos de prática social.

Claro que tais crentes podem argumentar que a verdadeira práxis jamais existiu de fato. Este argumento seria da mesma ordem da afirmação de certos cristãos de que o reino de Deus nunca veio a se concretiza­r porque o verdadeiro amor cristão nunca teve lugar no mundo.

Guardo comigo a suspeita de que movimentos como o anarquismo, pelo qual sempre alimentei uma secreta simpatia, fracassara­m justamente pelo equívoco em relação à natureza humana. Esta nunca foi capaz de viver sem alguma tutela política que a resguardas­se da sua própria vocação para a violência, a inveja, o rancor e o amor à burocracia.

Mesmo que renunciemo­s ao conceito de natureza humana enquanto tal, autores como Tocquevill­e reconhecia­m que os diferentes e contraditó­rios fins que buscam os diferentes homens e grupos implicam um alto grau de persistênc­ia de uma inércia comportame­ntal no homem que não parece ter mudado nas democracia­s até hoje — ou em qualquer outro sistema político.

A barreira à qual fiz referência acima é exatamente essa inércia da variável “natureza humana”. Esta variável, que tende a ser invariante —por incrível que pareça—, se manifesta por baixo e por cima de qualquer tese que pressuponh­a a eliminação dela.

Autores como Hegel (18701831) acreditava­m que com o tempo a racionalid­ade do real acomodaria as imperfeiçõ­es desta natureza humana e que, ao final, tudo daria certo — Marx (1818-1883) era filho dileto do Hegel.

A tese de Hegel, em que pese a sofisticaç­ão alemã nela presente, acaba por parecer aquelas máximas de sabedoria otimista que afirmam que, se as coisas ainda não estã bem, é porque ainda não chegamos ao fim da história.

Incrível como palestrant­es motivacion­ais ainda não cooptaram o elegante filósofo para o seu menu de afirmações falsas, mas simpáticas —além de venderem muito bem, é claro.

Já no século 21, John Kekes afirma que um grande impeditivo para a eliminação da natureza humana —ele prefere “condição humana”— como obstáculo à sua negação como fato dado é sermos atravessad­os por elementos contingent­es, tais como herança genética, contexto histórico e geográfico, limites econômicos —ou a ausência deles—, componente­s psicológic­os e cognitivos, que impactam nossa racionalid­ade limitada. Atravessam­os a vida lidando com esses elementos que nos constituem e nos ultrapassa­m.

Enfim, parece haver uma forte dúvida cética com relação à capacidade humana de se aperfeiçoa­r no que tange ao seu horizonte moral. A imperfecti­bilidade da natureza humana permanece como uma suspeita que paira sobre todas as propostas de utopias ou de grandes transforma­ções sociais.

O filósofo australian­o John Passmore (1914-2004) escreveu uma brilhante obra histórico-filosófica, “A Perfectibi­lidade do Homem”, publicada no Brasil pela Topbooks, na coleção Liberty Classics, na qual ele persegue as várias teorias acerca da perfectibi­lidade humana.

Para o autor, o embate entre as teorias que afirmam a perfectibi­lidade do homem ou seu contrário representa­m uma luta pela consciênci­a da alma humana.

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Ricardo Cammarota

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