Tchaikóvski gay em casamento de fachada provoca Putin em Cannes
Filme de Kirill Serebrennikov, notório desafeto do presidente russo, desafia imagem solene do grande compositor
Poucas horas após a aparição de surpresa do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, na cerimônia de abertura do Festival de Cannes, o evento decidiu alfinetar Vladimir Putin de novo. Dessa vez, em sua seleção oficial.
Promessa para chacoalhar o evento, “Tchaikovsky’s Wife”, ou a mulher de Tchaikóvski, foi exibido nesta quarta-feira. A expectativa vinha da incerteza sobre como um filme russo sobre a mulher de um dos maiores artistas do país retrataria sua suposta homossexualidade. E foi com sutileza que o diretor Kirill Serebrennikov mexeu nesse vespeiro.
Não que o assunto tenha sido deixado de lado. Mas não foi preciso apelar par agrandes discursos politizados para deixar claro o ponto do filme. O grande compositor de um país que institucionalizou a homofobia era,i negavelmente, gay. Que problema para Putin.
Na trama que compete pela Palma de Ouro, seguimos Antonina Miliukova, uma jovem aspirante a pianista obcecada pela música de Tchaikóvski. Depois de muita insistência, ele aceita se casar com ela —não por amor, mas para fazer uma cena e pôr amão em sua herança.
Iludida, Miliukovatent afazer com que o compositora ame, embora a desconexão entre eles fique clara já no casamento. Primeiro, alonga vela cerimonial queTchaikóvski segura emsu afrente se apaga —“não se preocupe, isso acontece com todo mundo”, diz o padre. Depois, ele tem dificuldade para introduzir seu dedo na aliança.
A partir daí, vemos como Miliukova se recusa a acreditar que o marido pode não a amar —ou ao menos consumar o casamento. A bebida com frequência entra em seu caminho, enquanto os amigos do compositor dão todos os indícios de que ele está mais interessado nos homens.
É num balé, aliás, que o longa encontra sua cena mais catártica. Enquanto dança, a protagonista é desnorteada por corpos masculinos nus, que a perseguem, se embaralham e jogam elementos da simbologia queer. A coreografia homoerótica representa sua descida ao inferno, regida por falos que balançam.
Fora uma cena ou outra que se permite fugir da cartilha dos filmes de época, “Tchaikovsky’s Wife” é bem sóbrio. O longa começa com um funeral, antecipando que as próximas duas horas serão de luto.
A paleta de cores escura acompanha a derrocada de Miliukova, que deixa de usar vermelhos intensos a mando do marido, enquanto ouve dos boêmios ao redor que “tudo é permitido aos gênios”. Até mesmo a homossexualidade, na Rússia do século 19.
Vindo do teatro, Serebrennikov conquistou liberdade semelhante nos últimos anos. Este é o quarto filme que exibe em Cannes, depois de “A Febre de Petrov”, em 2021, “Verão”, há quatro anos, e “O Estudante”, premiado em 2016.
Notório desafeto de Putin, o cineasta enfrentou um processo criminal e uma prisão domiciliar, que quase o impediram de estar neste festival. A Justiça russa o acusava de ter desviado recursos públicos destinados a um centro cultural. O caso foi arquivado e ele foi considerado inocente há menos de dois meses.
“A declaração política que podemos fazer aqui está ligada à arte. Num filme que mostra quão vulnerável a vida pode ser, fica claro que a arte é contra qualquer guerra”, disse ele no tapete vermelho.