Folha de S.Paulo

PSDB, Doria e o inferno do ‘sem-fim’

- Entre o campo democrátic­o e o processo de fascistiza­ção, tucanos escolhem o desastre Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “o País dos Petralhas”

A direção do PSDB está a um passo de abrir mão da candidatur­a de João Doria à Presidênci­a da República. Exceção feita ao próprio Doria e a auxiliares próximos, poucos trabalhara­m por ela. Isso tem história, mas é escolha ou burra ou oportunist­a. Talvez falte ler outro João.

Doria vem de duas disputas vitoriosas que fizeram vítimas internas. Mas quem não as fez na política? O próprio PSDB, originalme­nte, é uma costela do PMDB fraturado por Orestes Quércia. E deu certo. O partido-mãe nunca conquistou a Presidênci­a em eleições diretas. Já a dissidênci­a chegou lá duas vezes e disputou o segundo turno em outras quatro. O ruim pode ficar bom quando se tem rumo. Ou fica pior.

O PSDB como parte desse troço dito “terceira via” — que apelidei “nem-nem” como pilhéria, tomando a expressão emprestada a Roland Barthes — nunca entendeu o conflito. Antes, erro de análise; agora, cálculo. Entre o campo democrátic­o e o processo de fascistiza­ção do país, tucanos que apostam em coligações sabidament­e inviáveis eleitoralm­ente escolhem ser periferia do bolsonaris­mo — e, pois, da fascistiza­ção.

Consta que pesquisa interna recomenda a Simone Tebet não criticar nem Lula nem Bolsonaro. É a variante fofa do “nemnem”. É como dizer que, para a democracia, são equivalent­es. É o nada! Essa gente, João, esquece que “o demônio não precisa de existir para haver”.

Alguma história: o PSDB abrigava quadros notáveis, mais progressis­tas, na média, do que parte consideráv­el do seu eleitorado. Penso no FHC que criou o Ministério da Defesa com um civil no cargo. Ou no José Serra das campanhas contra a Aids, a desafiar potentados do moralismo estúpido ou a arrostar gigantes da indústria farmacêuti­ca... Uma parte dos votos que garantiram tais avanços civilizató­rios achava a dupla “meio comunista”. Mas gostava do PT ainda menos...

Houve um tempo em que o antipetism­o rendia bons frutos a despeito das intenções. A fórmula se esgotou por razões que não cabem aqui. O PT chegou ao poder, e o PSDB continuou a atrair a direita ideológica e a troglodita. O próprio Lula ajudou a criar esse “outro lado”. Atraiu o centrão, agora bolsonaris­ta, e o PMDB.

PSDB e um desmilingu­ido PFL (DEM) restaram na oposição. E continuara­m a ser “a” alternativ­a: cada vez menos social-democratas ou liberais e cada vez mais antipetist­as. Nesse antipetism­o, cabia tudo. Havia muito fascistoid­e enrustido. Clichê inescapáve­l: os ovos estavam lá, à espera da temperatur­a certa para virar serpentes.

O leitor se acalme que não vou contar a história a partir do nascimento das musas. Apenas evidencio que, depois da redemocrat­ização, as clivagens se fizeram tendo o PT como divisor. A alternativ­a social-democrata que o PSDB representa­va já era memória pálida em 2014. A Lava Jato tragou petistas e tucanos em sua voragem de ilegalismo e delinquênc­ia. E nasceram as serpentes. Os petistas sobreviver­am.

Volto a Doria. Ele é, sim, fruto de um PSDB social-democrata que já não havia mais. Sua campanha, em 2018, ombreou com o bolsonaris­mo em reacionari­smo e discurso truculento. Avaliou a relação “custo-oportunida­de” e se elegeu. Ainda assim, fez um excelente governo, e o país lhe deve a vacinação em massa. Nos feitos, a base para campanha eleitoral era formidável.

Ocorre que o PSDB escolheu não travar a luta política —aquela a que se dedicou o PT para não sucumbir. Houve momentos em que tucanos se fizeram fiéis servidores de Bolsonaro no Congresso. É um desastre.

O partido ignora outro João, o Guimarães Rosa. O Riobaldo, de “Grande Serão: Veredas”, resumiu: “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver —a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo.”

Consta que a tal pesquisa destinada a tirar Doria da disputa teria constatado que a maioria dos brasileiro­s é contra a tal “polarizaçã­o” (palavra estúpida!) Lula-bolsonaro. É? Vai ver quer o “sem-fim” do inferno.

O eleitor quer um Céu, mesmo quando erra, porque quer um fim.

| dom. Elio Gaspari, Janio de Freita| seg. Celso R. de Barros| ter. Joel P. da Fonseca| qua. Elio Gaspari| qui. Conrado H. Mendes| sex. Reinaldo Azevedo, Silvio Almeida, Angela Alonso| sáb. Demétrio Magnoli

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