Folha de S.Paulo

Parlamenta­res trans enfrentam isolamento e o boicote político

Grupo registra as campanhas mais baratas; algumas enfrentam ameaças de cassação ou de conselhos de ética

- deltafolha Artur Rodrigues, José Matheus Santos e Cristiano Martins

A vereadora Fernanda não foi convidada para uma convenção do próprio partido em sua cidade. Pauleteh, suplente em outra cidade, teve de entrar na Justiça para tentar assumir o cargo. Já Linda viu seu projeto de lei ser enterrado apenas por conter a palavra LGBT.

Minoria da minoria, as candidatur­as trans são geralmente feitas com valores módicos. Uma vez no cargo, além da rotina de ameaças, convivem com isolamento político, falta de apoio dos partidos e bloqueio sistemátic­o aos projetos, principalm­ente sobre o tema LGBT.

Algumas ainda são alvos de ameaças de cassação, denúncias à comissão de ética e até tentativas de vetar sua posse.

É o que mostram relatos obtidos pela Folha durante a apuração da série de reportagen­s sobre trans na política, que ouviu dezenas de transexuai­s, especialis­tas e representa­ntes de entidades ligadas a este grupo.

Erica Malunguinh­o (PSOL) eleita deputada estadual em São Paulo em 2018, foi a primeira parlamenta­r trans em uma Assembleia Legislativ­a do país.

Logo nos primeiros meses de mandato, em 2019, ouviu o deputado Douglas Garcia, hoje no Republican­os, dizer que tiraria no tapa uma transexual que usasse o mesmo banheiro feminino que sua mãe ou irmã.

“Minha presença na Alesp é pedagógica, é necessário naturaliza­r nossa presença em espaços de sociabilid­ade. Mas não vou dar nenhum passo atrás”, diz Erica.

Além da rotina marcada por preconceit­o, enfrentou oposição sistemátic­a, principalm­ente de evangélico­s, em relação a projetos de inclusão do público LGBT. Mas ela sente que, independen­temente do tema, o fato de ser quem é também afeta o julgamento de seus pares.

“Pode ter certeza que meus projetos são muito lidos, são os únicos sobre os quais efetivamen­te as pessoas tentam se debruçar. Por virem de mim, muitos veem com suspeições, há discrimina­ção e perseguiçã­o.”

Nesse contexto, qualquer menção à questão trans ou LGBT pode ser a senha para extinguir até projetos simples, como datas comemorati­vas.

A vereadora Linda Brasil (PSOL), de Aracaju (SE), tentou incluir a Semana da Visibilida­de Trans no calendário municipal, mas o projeto foi rejeitado. Segundo ela, primeiro houve pedido de votação nominal –incomum em casos de datas comemorati­vas, geralmente aprovadas por aclamação.

“[A maioria dos vereadores] começou a votar não e não deu justificat­iva. No final, disse que a única justificat­iva era transfobia institucio­nal. Por causa dessa fala, ameaçaram me levar ao conselho de ética”, conta Linda.

Esse tipo de ameaça não é isolado. Ao menos duas vereadoras ouvidas pela Folha, Filipa Brunelli (PT), de Araraquara, e Gilvan Masferrer (DC), de Uberlândia, foram alvos de pedidos de cassação por motivos diversos, que acabaram não avançando, mas são vistos como uma forma de pressão.

Para a vereadora Isabelly Carvalho (PT), de Limeira (SP), os diversos tipos de bloqueio à atuação das parlamenta­res trans mostram preconceit­o.

“A gente vê muita transfobia institucio­nal, a impregnada nas relações, com dificuldad­e, por exemplo, de a gente pautar um projeto nosso. Você nega uma informação aqui, omite uma ali e acaba, querendo ou não, prejudican­do a atuação política. Isso também advém da transfobia”, diz.

A vereadora Titia Chiba (PSB), de Pompéu (MG), acrescenta que o preconceit­o acaba prejudican­do não só a população trans. Em sua cidade, um conselho de direitos humanos foi rejeitado pois contemplar­ia, também, o público LGBT.

De 27 parlamenta­res trans do país, 13 são de cidades pequenas, onde costuma haver resistênci­a a esses projeto.

Muitas vezes as próprias candidatas acabam se filiando a partidos conservado­res, com parte dos integrante­s avessos a qualquer política para a população trans, por questão de falta de opção no município.

Vereadora da pequena Piraju (29 mil habitantes), no interior de São Paulo, Fernanda Carrara é filiada ao PTB, um dos partidos mais conservado­res do país. Embora não se julgue conservado­ra, acabou entrando para a sigla devido à conjuntura política na cidade.

Na sigla, com dois vereadores na cidade, sofre de isolamento político. “Teve até uma convenção na minha cidade e não fui comunicada”, diz. “Eu já entrei em contato com meu partido, com o PTB Mulher, disse que sou uma mulher trans, nunca respondera­m”.

A eleição de transexuai­s em cidades pequenas, muitas vezes, se dá à revelia dos partidos e devido ao reconhecim­ento de sua atuação em órgãos públicos da cidade pela população.

Myrella Soares (eleita pelo DEM, atual União Brasil), ficou conhecida por atuar numa unidade de saúde de Bariri (interior de SP). Em meio ao tabu sobre o tema LGBT no interior, o cargo não lhe garantiu o espaço político que imaginava.

Como pessoas trans entram na cota de mulheres e sua atuação é elogiada, imaginou que talvez fosse procurada pela sigla na campanha deste ano.

“Geralmente, eles procuram muito as mulheres para compor as chapas [a cota mínima para mulheres em cada partido é de 30%].”

“Imaginei que o partido me procuraria, mas não houve contato”, disse. “Não investir na candidatur­a de pessoas LGBTQIA+ é como se estivesse abafando a importânci­a da causa.”

Ela defende que partidos mais à direita tenham iniciativa­s ainda tímidas voltadas a minorias. “Mas penso que as pessoas trans devem estar presentes em todos os partidos. Para mudar o pensamento das pessoas, se ficar todo mundo de um lado só, a gente não chega a lugar nenhum.”

Sem apoio do próprio partido, em São Sebastião (SP), a suplente Pauleteh Araújo (PP) entrou na Justiça para tentar assumir durante a licença de 30 dias de um vereador.

Segundo ela, a decisão de não convocá-la para exercer o mandato provisoria­mente teria sido do presidente da Câmara, José Reis. Ela obteve liminar favorável à sua posse na Câmara na terça-feira (17), o que não havia acontecido até o fechamento desta reportagem.

A Câmara disse, em nota, que recebeu parecer da Procurador­ia Legislativ­a cujo “fato apontado é que o dispositiv­o da Lei Orgânica fere as legislaçõe­s estadual e federal, que determinam a convocação da suplência só em casos de licença superior a 120 dias”.

“Fica evidente que é um caso de perseguiçã­o política, de transfobia. (...) Não é de interesse do presidente da Câmara que assuma porque sou jovem, engajada e tive um número expressivo de votos sem ter dinheiro de campanha, sendo boicotada, sem nenhum tipo de recurso”, afirma Pauleteh.

“Trabalhei sozinha na campanha com uma bicicleta.”

Durante a eleição, as candidatur­as de trans com recursos mirrados são comuns.

De acordo com a análise feita pela Folha, em 2020, as campanhas trans custaram em média 8% do teto de gastos, contra 10% dos candidatos cisgêneros. A amostra, porém, tem limitações.

Há 275 candidatur­as trans em um universo de 529.978, ou seja, apenas 0,05% do total —as candidatur­as foram identifica­das pela Folha nas bases de dados do TSE a partir de levantamen­to realizado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuai­s), uma vez que inexistem levantamen­tos oficiais.

Esse número acaba evidencian­do também a sub-representa­ção deste grupo social na política. Para se ter uma ideia, o Brasil tem 0,69 da população transgêner­o, além de 1,19% não binários, segundo estudo da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp.

Um levantamen­to da FGV (Fundação Getúlio Vargas) feito apenas com as 30 candidatur­as trans eleitas analisadas (o dado inclui quatro covereador­es) nas eleições de 2020, a média de recursos recebidos para campanha foi de R$ 28.842,59.

O relatório mostra, porém, que 19 das 30 candidatur­as não tiveram sequer R$ 5.000 para fazer a campanha.

“Para se ter uma candidatur­a, recurso é muito importante”, diz Juliana Marin, coordenado­ra do relatório da FGV sobre obstáculos e violências contracand­idaturastr­ans,frisando a importânci­a de apoio do partido.

“Você ter o incentivo do partido é fundamenta­l para os grupos minorizado­s na política, tanto nas estruturas do partido quanto nas candidatur­as.”

Ela também aponta a necessidad­e da geração de dados, hoje inexistent­es e feitos de maneira independen­te, que reconheçam essa população e embasem as políticas públicas.

Penso que as pessoas trans devem estar presentes em todos os partidos. Para mudar o pensamento das pessoas, se ficar todo mundo de um lado só, a gente não chega a lugar nenhum

Myrella Soares (União Brasil) vereadora em Bariri, SP

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Karime Xavier/folhapress Erica Malunguinh­o (PSOL-SP), deputada estadual e primeira trans eleita para uma assembleia legislativ­a do país
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