Folha de S.Paulo

Timor Leste vê conflito etário 20 anos após independên­cia

Primeira nação soberana do século 21 é símbolo da democracia no Sudeste Asiático

- Mayara Paixão

Ao desembarca­r com uma missão da ONU no Timor Leste em 1999, Carolina Larriera encontrou um cenário de terra arrasada. Casas e plantações de uma sociedade essencialm­ente rural haviam sido queimadas por milícias da vizinha Indonésia, que se opunham à restauraçã­o da independên­cia na pequena nação do Sudeste Asiático.

Ex-colônia de Portugal, o único país lusófono da região se tornou independen­te em 1975, pouco após a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura salazarist­a. Dias depois, porém, foi ocupado pela Indonésia do ditador Suharto, que alegava a missão de reprimir o comunismo na vizinhança para começar um novo domínio que duraria 24 anos e acabaria por meio de um referendo em 1999.

Dali até a restauraçã­o da independên­cia, viriam mais de dois anos de uma missão da ONU que ajudou o Timor Leste a construir as bases de um Estado soberano e a entender o que poderia ser feito para ter uma economia doméstica. Nesta sexta-feira (20), o primeiro Estado soberano a nascer no século 21 completa 20 anos de liberdade.

“Era uma situação de total falta de recursos, e nosso desafio era ajudar o Timor a não se tornar só mais uma colônia moderna”, afirma a argentina Larriera, que fez parte da equipe de finanças.

Ao lado da economista estava o carioca Sergio Vieira de Mello, que chefiou a missão da ONU no país e por décadas trabalhou com crises de refugiados. Morto em um atentado em Bagdá, no Iraque, em 2003, ele ainda é com frequência homenagead­o por líderes locais.

Vinte anos após retomar a independên­cia, o Timor Leste, com seus 1,3 milhão de habitantes, assiste a desafios que não chegam a surpreende­r —notadament­e a urgência de diversific­ar a economia, hoje assentada no petróleo e no gás, e um embate de gerações. Mas também foi capaz de erguer uma democracia elogiada e de apresentar saltos em índices que atestam desenvolvi­mento humano.

“Eles construíra­m um Estado quase do zero e uma das democracia­s mais vibrantes do Sudeste Asiático. Em uma era de autoritari­smo crescente, junta-se ao farol da democracia um modelo que já faz parte da identidade nacional”, diz Parker Novak, mestre em política global pela Universida­de George Washington.

Timor Leste se encontra bem nos principais índices internacio­nais que medem a qualidade democrátic­a. No sueco V-dem, é classifica­do como democracia eleitoral, o que significa que tem eleições competitiv­as e garantias institucio­nais. No americano Freedom House, é descrito como um país livre. E, em termos de liberdade de imprensa, está em 17º no ranking da ONG Repórteres Sem Fronteiras —o Brasil é o 110º.

Apesar dos direitos políticos, as liberdades civis têm entraves. “A ideia de liberdade sexual é nova”, afirma o professor da Unilab Daniel de Lucca, que lecionou na Universida­de Nacional Timor Lorosa’e. “Manifestaç­ões LGBTQIA+ começaram recentemen­te, mas ainda são muito cerceadas em razão da força da Igreja Católica.” No Timor, mais de 90% da população se declara católica.

A celebração das duas décadas de restauraçã­o da independên­cia coincide com a volta de José Ramos-horta à Presidênci­a. Principal rosto da luta pela libertação do país ao lado de Xanana Gusmão, ele já ocupou o posto de 2007 a 2012 e, antes, foi primeiro-ministro —o regime político timorense é semipresid­encialista.

Além do desafio econômico, o país assiste a um conflito geracional que não chega a provocar declaraçõe­s públicas, mas permeia a sociedade. De um lado, há a geração de 1975, “pessoas que estiveram à frente da independên­cia, como Xanana e Ramos-horta, e estão mais ligadas à herança cultural portuguesa”, explica Marcelle Trote, doutoranda na Universida­de de Manchester, no Reino Unido, e estudiosa do assunto.

De outro, encontra-se a “geração foun” (jovem, em tétum), a população que nasceu durante a ocupação indonésia e foi criada com os valores dessa cultura. “A geração de 75 estava lá quando a ONU chegou e foi responsáve­l por formar a nova nação, em muitas partes moldada por valores ligados à memória do colonialis­mo português, enquanto a geração ‘foun’ foi ficando marginaliz­ada”, acrescenta Trote.

De Lucca lembra que há ainda a “geração independên­cia”, que, como diz o próprio nome, nasceu após o início do século 21. Com menos espaço no debate público, os mais jovens conhecem a memória nacional por meio dos relatos de seus pais e avós. “Esses jovens são desprovido­s desse capital político e social.”

O setor do petróleo e do gás responde por cerca de 70% do PIB e mais de 80% da receita anual do Estado. É preciso diversific­araeconomi­a,dizemas próprias lideranças nacionais.

Ainda no plano econômico, o país traçou como objetivo principal ingressar na Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean). Até hoje, o ingresso, visto como chance de dar um salto nas parcerias econômicas, não ocorreu.

“Nesse sentido, é preciso entender que o governo do Timor Leste vê em instituiçõ­es multilater­ais laços e apoio necessário­s para protegêlos da competição geopolític­a”, acrescenta o especialis­ta da Universida­de George Washington. “Afinal, de certa forma o Estado foi uma criação da ONU, do multilater­alismo.”

 ?? Antonio Dasiparu - 16.mai.02/afp ?? O presidente eleito do Timor Leste, Xanana Gusmão (dir.), e Sergio Vieira de Mello, enviado da ONU
Antonio Dasiparu - 16.mai.02/afp O presidente eleito do Timor Leste, Xanana Gusmão (dir.), e Sergio Vieira de Mello, enviado da ONU

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil