Aneel aceita backup para cobrir térmicas atrasadas da J&F que custam R$ 18 bi
Projetos fazem parte do grupo de 14 usinas antirracionamento que são questionadas pelo setor por elevarem a conta de luz em 4,5%
As térmicas a gás contratadas pelo novo regime simplificado estão em uma nova controvérsia: 4 dos 14 projetos que deveriam estar em operação desde 1º de maio, mas ainda estão em obras, serão cobertos por uma outra usina enquanto não ficam prontos.
O backup foi aprovado na terça (17) em reunião de diretoria da Aneel (Agência Nacional do Setor de Energia Elétrica). O diretor relator, Efrain Pereira da Cruz, deu aval para a operação em caráter cautelar, ou seja, não é definitivo, mas libera a operação. Também participaram o diretorgeral substituto, Hélvio Neves Guerra, que presidiu os trabalhos, e o diretor Sandoval de Araújo Feitosa Neto.
A decisão suspendeu o pagamento de R$ 209 milhões mensais em multas. Segundo estimativas, as quatro térmicas vão custar R$ 18 bilhões até o fim de 2025.
As usinas pertencem à Âmbar Energia, braço da J&J, também controladora da JBS, gigante global do setor de carnes. Enquanto estão em obras, a falta de sua geração será coberta pela oferta da Térmica Mário Covas, em Cuiabá, também da Âmbar.
A decisão da Aneel foi recebida com espanto por integrantes do setor de energia, pois a avaliação é que a agência não atuou em benefício do consumidor.
“Criaram um grande jabuti regulatório”, diz Paulo Pedrosa, presidente da Abrace, entidade que representa os grandes consumidores de energia. A alternativa, avalia ele, contraria a regra do leilão e o que foi previsto nos contratos e vai contra a redução da conta de luz.
Há outros detalhes que incomodaram os especialistas do setor. Pelo contrato, as térmicas do leilão simplificado precisam ser novos projetos, construídos do zero, para expandirem o sistema de abastecimento, ou usinas que ainda não estivessem em operação na data do certame.
A cláusula 4.4 do contrato que rege o leilão estabelece que “a energia definida no contrato não poderá ser entregue por outa usina do vendedor, por outro agente da CCEE [Câmara de Comercialização de Energia Elétrica], nem pelo conjunto dos agentes em razão de operação otimizada do SIN [Sistema Interligado Nacional]”.
Esse documento tem o logotipo da Aneel, pois foi ela que realizou o leilão, por delegação do MME (Ministério de Minas e Energia). O documento estava anexado ao edital.
“Para nós, o contrato é claro ao vedar explicitamente a transferência de energia, e estamos preparando nossa contribuição à Aneel, na forma de um recurso”, diz Pedrosa, da Abrace.
O pedido da Âmbar à Aneel para que aceite o backup dos projetos atrasados corre em sigilo na agência. Segundo pessoas ouvidas pela Folha ,a área técnica ainda nem avaliou. Procurada pela reportagem, a agência não respondeu.
Em nota, a Âmbar afirmou que os projetos serão integralmente entregues, dentro do prazo contratual, adicionando capacidade de geração ao sistema elétrico.
“A proposta da companhia mantém a construção das novas usinas, já em andamento, além de reduzir a emissão de gás de efeito estufa em 15 vezes e beneficiar o consumidor em R$ 628 milhões em relação ao projeto inicial”, diz o texto.
As térmicas deveriam começar a gerar energia em 1º de maio, com fornecimento regular até 2025. Não são desligadas como outras térmicas. O adiamento na operação prevê multa e cancelamento do contrato após três meses de atrasos, ou seja, 1º de agosto.
A térmica de Cuiabá, que tem cerca de 20 anos, não se encaixa no perfil estabelecido na regra, afirma Pedrosa. “Essa decisão protege a térmica prejudicando o consumidor”, diz.
“O agente ganhou o leilão com uma proposta, e, quando ganhou, essas térmica não poderia ter participado da licitação porque era uma térmica existente, que gerou emergencialmente para atender os consumidores, por decisão do governo, a um custo altíssimo. Não podia participar do leilão, então, não entrou pela porta da frente, mas agora entra pela porta de trás.”
Entre executivos mais antigos do setor energia, circulou a seguinte analogia para explicar como interpretaram a decisão da agência: em outubro venderam um carro zero para entrega em maio. Chegou maio, o intermediário, a Aneel, autorizou que entregassem um Fusquinha antigo no lugar.
Entidades do setor de energia e de defesa do consumidor, que já consideravam essas térmicas desnecessárias e caras, estão pedindo explicações à agência. Internamente, a decisão da diretoria também causou mal-estar. Um superintendente da área de geração da Aneel tem dito a colegas que não assina estudos para embasar resolução sobre as térmicas da Âmbar.
A Abrace já havia enviado correspondência à Aneel mostrando que a maioria dessas térmicas estava atrasada e solicitando que, dado o seu alto custo, seria prudente aplicar a suspensão dos contratos das empresas que não gerassem energia até a data-limite.
Associações de defesa do consumidor estudam recorrer à Justiça para impedir a substituição de quatro térmicas. Anace (Associação Nacional dos Consumidores de Energia) e Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) classificaram como “lamentável” e “deplorável” a decisão da Aneel que permite à Âmbar usar energia da térmica de Cuiabá, já pronta, para cumprir os contratos.
O leilão contratou 775,8 MW (megawatts) a um custo total de R$ 39 bilhões, com o objetivo de garantir a recuperação dos reservatórios das hidrelétricas. Até o momento, só uma usina entrou em operação.
“É lamentável a justificativa do diretor Efraim Pereira da Cruz [relator do caso] de que a decisão atende ao interesse público”, disse o diretor-presidente da Anace, Carlos Faria. “O processo é totalmente irregular, pois as regras do leilão exigiam que os empreendimentos fossem novos.”
“Não faz sentido que os projetos inviáveis contratados no leilão sejam substituídos por usinas existentes”, disse o coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec, Anton Schwyter.
O setor elétrico questiona ainda o alto custo da contratação, que teve um valor médio de energia de R$ 1.560 por MWH (megawatt-hora), mais de sete vezes o valor alcançado nos leilões para o mercado regulado, que foi de R$ 210 por MWH em 2019.
Enquanto opera como backup, a térmica de Cuiabá vai receber R$ 616,03 R$/MWH, um valor inferior ao leilão e ao do mercado para projetos de gás semelhantes. Por causa da guerra, o preço do gás teve repique e um projeto do gênero ficaria acima de R$ 3.000.
No entanto, o valor é considerado elevado comparado com outras fontes ou com a média atual, com os reservatórios das hidrelétricas cheios. A projeção é que o preço da energia no mercado à vista neste ano fique abaixo de R$ 60/MWH.