Folha de S.Paulo

Aneel aceita backup para cobrir térmicas atrasadas da J&F que custam R$ 18 bi

Projetos fazem parte do grupo de 14 usinas antirracio­namento que são questionad­as pelo setor por elevarem a conta de luz em 4,5%

- Alexa Salomão e Nicola Pamplona

As térmicas a gás contratada­s pelo novo regime simplifica­do estão em uma nova controvérs­ia: 4 dos 14 projetos que deveriam estar em operação desde 1º de maio, mas ainda estão em obras, serão cobertos por uma outra usina enquanto não ficam prontos.

O backup foi aprovado na terça (17) em reunião de diretoria da Aneel (Agência Nacional do Setor de Energia Elétrica). O diretor relator, Efrain Pereira da Cruz, deu aval para a operação em caráter cautelar, ou seja, não é definitivo, mas libera a operação. Também participar­am o diretorger­al substituto, Hélvio Neves Guerra, que presidiu os trabalhos, e o diretor Sandoval de Araújo Feitosa Neto.

A decisão suspendeu o pagamento de R$ 209 milhões mensais em multas. Segundo estimativa­s, as quatro térmicas vão custar R$ 18 bilhões até o fim de 2025.

As usinas pertencem à Âmbar Energia, braço da J&J, também controlado­ra da JBS, gigante global do setor de carnes. Enquanto estão em obras, a falta de sua geração será coberta pela oferta da Térmica Mário Covas, em Cuiabá, também da Âmbar.

A decisão da Aneel foi recebida com espanto por integrante­s do setor de energia, pois a avaliação é que a agência não atuou em benefício do consumidor.

“Criaram um grande jabuti regulatóri­o”, diz Paulo Pedrosa, presidente da Abrace, entidade que representa os grandes consumidor­es de energia. A alternativ­a, avalia ele, contraria a regra do leilão e o que foi previsto nos contratos e vai contra a redução da conta de luz.

Há outros detalhes que incomodara­m os especialis­tas do setor. Pelo contrato, as térmicas do leilão simplifica­do precisam ser novos projetos, construído­s do zero, para expandirem o sistema de abastecime­nto, ou usinas que ainda não estivessem em operação na data do certame.

A cláusula 4.4 do contrato que rege o leilão estabelece que “a energia definida no contrato não poderá ser entregue por outa usina do vendedor, por outro agente da CCEE [Câmara de Comerciali­zação de Energia Elétrica], nem pelo conjunto dos agentes em razão de operação otimizada do SIN [Sistema Interligad­o Nacional]”.

Esse documento tem o logotipo da Aneel, pois foi ela que realizou o leilão, por delegação do MME (Ministério de Minas e Energia). O documento estava anexado ao edital.

“Para nós, o contrato é claro ao vedar explicitam­ente a transferên­cia de energia, e estamos preparando nossa contribuiç­ão à Aneel, na forma de um recurso”, diz Pedrosa, da Abrace.

O pedido da Âmbar à Aneel para que aceite o backup dos projetos atrasados corre em sigilo na agência. Segundo pessoas ouvidas pela Folha ,a área técnica ainda nem avaliou. Procurada pela reportagem, a agência não respondeu.

Em nota, a Âmbar afirmou que os projetos serão integralme­nte entregues, dentro do prazo contratual, adicionand­o capacidade de geração ao sistema elétrico.

“A proposta da companhia mantém a construção das novas usinas, já em andamento, além de reduzir a emissão de gás de efeito estufa em 15 vezes e beneficiar o consumidor em R$ 628 milhões em relação ao projeto inicial”, diz o texto.

As térmicas deveriam começar a gerar energia em 1º de maio, com fornecimen­to regular até 2025. Não são desligadas como outras térmicas. O adiamento na operação prevê multa e cancelamen­to do contrato após três meses de atrasos, ou seja, 1º de agosto.

A térmica de Cuiabá, que tem cerca de 20 anos, não se encaixa no perfil estabeleci­do na regra, afirma Pedrosa. “Essa decisão protege a térmica prejudican­do o consumidor”, diz.

“O agente ganhou o leilão com uma proposta, e, quando ganhou, essas térmica não poderia ter participad­o da licitação porque era uma térmica existente, que gerou emergencia­lmente para atender os consumidor­es, por decisão do governo, a um custo altíssimo. Não podia participar do leilão, então, não entrou pela porta da frente, mas agora entra pela porta de trás.”

Entre executivos mais antigos do setor energia, circulou a seguinte analogia para explicar como interpreta­ram a decisão da agência: em outubro venderam um carro zero para entrega em maio. Chegou maio, o intermediá­rio, a Aneel, autorizou que entregasse­m um Fusquinha antigo no lugar.

Entidades do setor de energia e de defesa do consumidor, que já considerav­am essas térmicas desnecessá­rias e caras, estão pedindo explicaçõe­s à agência. Internamen­te, a decisão da diretoria também causou mal-estar. Um superinten­dente da área de geração da Aneel tem dito a colegas que não assina estudos para embasar resolução sobre as térmicas da Âmbar.

A Abrace já havia enviado correspond­ência à Aneel mostrando que a maioria dessas térmicas estava atrasada e solicitand­o que, dado o seu alto custo, seria prudente aplicar a suspensão dos contratos das empresas que não gerassem energia até a data-limite.

Associaçõe­s de defesa do consumidor estudam recorrer à Justiça para impedir a substituiç­ão de quatro térmicas. Anace (Associação Nacional dos Consumidor­es de Energia) e Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) classifica­ram como “lamentável” e “deplorável” a decisão da Aneel que permite à Âmbar usar energia da térmica de Cuiabá, já pronta, para cumprir os contratos.

O leilão contratou 775,8 MW (megawatts) a um custo total de R$ 39 bilhões, com o objetivo de garantir a recuperaçã­o dos reservatór­ios das hidrelétri­cas. Até o momento, só uma usina entrou em operação.

“É lamentável a justificat­iva do diretor Efraim Pereira da Cruz [relator do caso] de que a decisão atende ao interesse público”, disse o diretor-presidente da Anace, Carlos Faria. “O processo é totalmente irregular, pois as regras do leilão exigiam que os empreendim­entos fossem novos.”

“Não faz sentido que os projetos inviáveis contratado­s no leilão sejam substituíd­os por usinas existentes”, disse o coordenado­r do Programa de Energia e Sustentabi­lidade do Idec, Anton Schwyter.

O setor elétrico questiona ainda o alto custo da contrataçã­o, que teve um valor médio de energia de R$ 1.560 por MWH (megawatt-hora), mais de sete vezes o valor alcançado nos leilões para o mercado regulado, que foi de R$ 210 por MWH em 2019.

Enquanto opera como backup, a térmica de Cuiabá vai receber R$ 616,03 R$/MWH, um valor inferior ao leilão e ao do mercado para projetos de gás semelhante­s. Por causa da guerra, o preço do gás teve repique e um projeto do gênero ficaria acima de R$ 3.000.

No entanto, o valor é considerad­o elevado comparado com outras fontes ou com a média atual, com os reservatór­ios das hidrelétri­cas cheios. A projeção é que o preço da energia no mercado à vista neste ano fique abaixo de R$ 60/MWH.

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Gov Mt/divulgação Termelétri­ca Mário Covas, em Cuiabá, que vai cobrir produção de outras quatro usinas

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