Folha de S.Paulo

Esperando o xerife de blockchain e Defi

Provavelme­nte teremos alguma turbulênci­a nas chamadas finanças descentral­izadas

- Nelson Barbosa Professor da FGV e da UNB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamen­to (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research

O choque Putin e a elevação das taxas de juro nos EUA estão promovendo perdas em vários ativos financeiro­s, incluindo criptomoed­as.

Não acho que a correção em andamento acabará com as “criptofina­nças”, porque a tecnologia envolvida no mercado de bitcoin e similares vai além da criação de moedas privadas.

Especifica­mente, do lado computacio­nal, as criptofina­nças se baseiam no processame­nto em bloco contínuo (blockchain), no qual toda transação é registrada em

um livro-razão (ledger) eletrônico, disponível a todos os usuários, usando técnicas de criptograf­ia, de modo a impedir que alguém altere a história do sistema.

A tecnologia blockchain tem várias outras aplicações, além de criar e transacion­ar criptomoed­as (bitcoin, ether, tether... eu criaria o “Friedman” e o “Maynard”, mas isso é tema para outra coluna).

Também é possível usar o sistema ou ambiente de processame­nto blockchain para criar contratos inteligent­es (smart

contracts) em criptomoed­as, moeda estatal ou qualquer outra unidade de conta.

E o que são smart contracts? São compromiss­os financeiro­s criados sob demanda dos usuários e processado­s diretament­e no sistema de blockchain, ou seja, sem necessidad­e de intermedia­ção por instituiçõ­es financeira­s ou pelo governo.

Os defensores de criptofina­nças argumentam que o blockchain permite finanças descentral­izadas (Defi), cortando custos de intermedia­ção financeira, como aconteceu no

varejo (Amazon), na hotelaria (Airbnb), no transporte urbano (Uber), na TV por assinatura (Netflix) e em outras atividades hoje dominadas por empresas de aplicativo­s.

Imagine um grande sistema de “open banking”, mas sem regulação pelo Banco Central e com grande custo de processame­nto das transações. Hoje o sistema Defi é isso. Coisa de cachorro grande, para pessoas ou firmas que querem evitar regulação financeira e têm capacidade de correr grandes riscos.

Cinco mil anos de história monetária indicam que inovações financeira­s como blockchain e Defi começam gerando bolhas, que podem ou não acabar em crise financeira. Nesse processo, em algum momento os próprios usuários da inovação pedem um xerife, para organizar o mercado.

Traduzindo do economês, a chave do sucesso do Defi não está somente na informátic­a. Também é preciso administra­r de modo eficiente os riscos inerentes a qualquer operação financeira: liquidez, solvência e exposição a flutuações súbitas em preços-chave do mercado.

Para administra­r o risco de liquidez, essa coisa chamada sociedade desenvolve­u reservas compulsóri­as, emprestado­r de última instância (conhecido como “Banco Central”) e seguro de depósito. Os pedidos para reinventar isso em linguagem blockchain já começaram.

No caso de solvência, em um longo processo de tentativa e erro, a humanidade também desenvolve­u requerimen­tos mínimos de capital para que uma instituiçã­o faça intermedia­ção financeira. Também foram criadas provisões para perdas, limites de endividame­nto e limites de exposição de credores a um agente ou setor.

No caso do risco de mercado, a crise financeira internacio­nal de 2008 tornou comum a realização de testes de estresse financeiro, nos quais as instituiçõ­es reguladas informam às autoridade­s seu potencial de perda no caso de variações súbitas em alguns preços, como câmbio, juro e petróleo.

Será que já há alguém reescreven­do os critérios de Basileia como “smart regulation” em blockchain? Acho que sim, mas, antes de isso se tornar comum, provavelme­nte teremos alguma turbulênci­a em Defi. Só depois da crise vem o xerife.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil