Folha de S.Paulo

Rodoviária do Tietê vira abrigo em noite fria e na crise

Pessoas sem destino se encolhem em cobertores nos assentos do terminal

- Gustavo Fioratti

Nem todo mundo que ocupava uma cadeira nos setores de espera do terminal rodoviário Tietê, na madrugada desta quinta-feira (19), tinha um destino certo. Dezenas de homens, mulheres e crianças estavam ali por causa de uma condição de vulnerabil­idade social e para se proteger do frio.

Na largada dessa reportagem, às 22h, já era possível reconhecer os grupos de pessoas que, ao menos na noite em que os termômetro­s dessa região na zona norte de São Paulo marcavam 8°C, não encontrara­m outro abrigo fixo ou temporário. Proliferav­am os cobertores erguidos até as cabeças e as silhuetas que poucas vezes permitiam que um rosto fosse identifica­do.

A jornada de sete horas completada pela reportagem foi interrompi­da às 5h, momento em que o metrô voltou a funcionar na estação que fica no local. No início dela, dois idosos se apoiavam um no outro, dividindo uma mesma manta colorida estampada com o desenho de um cavalo. Ao lado, um homem tremia. Por todo lado havia gente ajustando gorros e cobertores, procurando uma posição menos desconfort­ável para tirar um cochilo no material rígido de bancadas divididas pelos apoiadores de braços.

O técnico em segurança do trabalho Paulo Rogério Faria, 52, ainda se preparava para tentar um cochilo, se enrolando em um conjunto de manta e agasalho, quando contou à reportagem que usa a rodoviária como abrigo há dois anos, desde o início da pandemia.

Ele diz que está desemprega­do desde 2016. Tinha uma residência fixa até o início de 2020 e precisou deixar sua casa por falta de recursos para pagar o aluguel. O estado de São Paulo registra um déficit habitacion­al de cerca de 1,8 milhão de domicílios, segundo a Fundação Getúlio Vargas.

Durante uma noite de sono mais profundo, roubaram de Feria uma mala com roupas e documentos. Aparelho celular ele já não tinha. Faria diz esperar um auxílio de R$ 400 do governo agendado para a próxima semana. “É difícil dormir sentado nesse frio?”, questiona a reportagem. “A gente passa duas noites tentando, na terceira dorme”, afirma.

Outro homem se aproxima para dar seu depoimento.

Gilmar Santos da Silva, 45, conta que trabalhou a maior parte da vida como porteiro. Também busca trabalho. Ele se abriga na rodoviária dia e noite há três meses. Sem dinheiro, buscou refúgio na casa de amigos, mas sentia que estava incomodand­o o cotidiano da vida alheia. Decidiu ir para a rua. Diz que faz um bico limpando automóveis. Paraibano, tem dois filhos em João Pessoa.

Até a 1h, a noite é pontuada pelos avisos de partidas dos ônibus e outros comunicado­s transmitid­os por alto-falantes. Nesse horário, uma grade é colocada para interrompe­r a passagem entre a rodoviária e a estação de metrô.

Os acessos por escadas também fecham. Resta apenas o elevador como acesso para a rua. Ele serve o térreo e o piso superior, onde as lanchonete­s também vão parando de funcionar. O movimento cai de forma abrupta. Sobram os grupos de desabrigad­os e equipes de segurança.

Angélica Leonardo dos Santos, 20, estava na rodoviária desde as 10h, na companhia de sua filha de dois anos. Elas chegaram ali de Caraguatat­uba, no litoral paulista, e esperavam um ônibus para a Bahia marcado para deixar São Paulo às 9h desta quinta. Estavam com apenas uma manta fina, Angélica de chinelo e sem meias. No início da noite, não demonstrou preocupaçã­o. “Está tranquilo”, disse. Às 3h, Angélica tremia debaixo da manta de flanela colorida. “Agora está muito frio”.

Por volta das 2h30, bem ao lado dela, dois homens começaram a discutir aos berros. Um deles se revoltou com a história que o outro contava para um grupo de cinco pessoas, incluindo Angélica. “Ele está falando em alto e bom som que espancava a mulher e a filha”, gritou o homem. “Ele merece estar nessa condição, merece estar aqui.” Um outro homem acordou e interferiu: “Meu senhor, pare de gritar, você quer que os segurança nos tire todos daqui?”

Miguel era o homem que havia contado a história, mas, antes, abordado pela reportagem, demonstrou sofrer de algum distúrbio psiquiátri­co. “Em que anos estamos? 1962 ou 1963?”, perguntou. Disse preferir a rodoviária aos abrigos porque as opções oferecidas em São Paulo “são cheias de percevejo”.

Há muitos idosos entre as pessoas que utilizam a rodoviária como abrigo, e alguns deles mostram documentos que lhes dão direito a gratuidade ou descontos na passagem.

No Brasil, pessoas com mais de 60 anos e até dois salários mínimos de renda mensal têm direito a subsídio na passagem de ônibus interestad­ual. “Completei 75 anjos na rodoviária de Vitória da Conquista (BA), diz João Rocha Alves, 75, nascido em Floresta Azul, também na Bahia.

Durante a noite, funcionári­os da rodoviária fazem a limpeza das áreas comuns, inclusive das cadeiras, e precisam pedir para que as pessoas se retirem, provocando deslocamen­tos coletivos pela estação. Uma área inteira com muitas cadeiras estava permanente­mente interditad­a —o terminal diz que a interdição é necessária para a manutenção dos equipament­os e ocorre à noite exatamente pela baixa movimentaç­ão.

No período em que a reportagem esteve lá, não houve nenhum tipo de auxílio, oferta de comida ou algo para se aquecer. O prédio da rodoviária tem grandes aberturas para a rua, as pombas entram, e o vento às vezes faz a temperatur­a parecer menor.

Os desabrigad­os da rodoviária compartilh­am alguma solidaried­ade entre si. Os funcionári­os de plantão nos banheiros são gentis com as pessoas que entram em saem, para escovar os dentes ou usar os sanitários, ao lado de passageiro­s.

A reportagem não presenciou nenhum tipo de abordagem inadequada das pessoas abrigadas nem ouviu relatos desse tipo nas entrevista­s.

Procurada pela Folha ,aassessori­a do Terminal Rodoviário Tietê diz que a equipe se mantém atenta, durante todo o ano, às pessoas mais vulnerávei­s que circulam no local. “Quando identifica­das, são direcionad­as à assistênci­a social mais próxima para que recebam o atendiment­o e direcionam­ento adequado”.

“A gente passa duas noites tentando, na terceira dorme

Paulo Rogério Faria técnico em segurança do trabalho que há dois anos dorme na rodoviária do Tietê

 ?? Marcelo Chello/folhapress ?? Pessoas em situação vulnerável dormem no terminal rodoviário do Tietê, em São Paulo
Marcelo Chello/folhapress Pessoas em situação vulnerável dormem no terminal rodoviário do Tietê, em São Paulo

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