Folha de S.Paulo

James Gray cria longa que reflete os EUA de Trump na era Reagan

‘Armageddon Time’ revisita infância do diretor no Queens e traz Anthony Hopkins, Anne Hathaway e Jeremy Strong

- Leonardo Sanchez

CANNES (frança) É nos créditos finais de “Armageddon Time” que o Brasil faz o que deve ser sua maior participaç­ão no Festival de Cannes deste ano. Sem filmes inéditos para exibir no evento, o país tem sua chance de brilhar com o novo longa de James Gray, que tem coprodução do carioca Rodrigo Teixeira, da RT Features.

A parceria entre Estados Unidos, produtor majoritári­o, e Brasil é um dos títulos mais aguardados entre os que miram a Palma de Ouro. É também um dos poucos com grandes estrelas no elenco —no caso, o lendário Anthony Hopkins, a já consagrada Anne Hathaway e o astro em ascensão Jeremy Strong.

Eles encarnam as memórias de infância de Gray, que em seu roteiro retorna à década de 1980 no bairro do Queens, em Nova York, para um conto sobre amizade e laços familiares, mas também sobre a ebulição social do primeiro mandato de Ronald Reagan.

Hathaway e Strong são americanos de classe média, que lamentam o estado do país sob o regime do presidente americano, se compadecem de causas sociais, mas deixam escapar, aqui e ali, um racismo velado que entra no caminho da amizade que seu filho, uma versão do próprio Gray, cria com um colega de sala.

No primeiro dia do novo ano letivo, Paul conhece o repetente Johnny. O primeiro vem de um lar com problemas, mas carinhoso. O segundo mora com a avó, já num estado de saúde que a aproxima de um asilo, e o garoto, de um orfanato. O desrespeit­o pelos professore­s e as palhaçadas na sala os enlaça, apesar de haver um contraste entre os dois — algo que curiosamen­te ecoa o mote de “Le Otto Montagne”, outro longa em competição em Cannes que versa sobre classe e oportunida­des na figura de dois meninos.

Ao contrário do que acontece no filme italiano, em “Armageddon Time” é mais difícil sentir empatia pelo pequeno Paul, que guia toda a história. Ele é mimado e insolente, e o único familiar que de fato consegue se conectar com ele é o avô, papel de Hopkins.

Em tempos de Guerra da Ucrânia, ele relembra quando a mãe fugiu do país e da perseguiçã­o que sofria de soldados russos rumo à Inglaterra, onde conheceu o marido e de onde, eventualme­nte, partiu rumo aos Estados Unidos. Os temas de imigração abordados por Gray em “Era Uma Vez em Nova York” —que também concorreu à Palma de Ouro em 2013— se repetem, mesmo que em leves pinceladas. “Lembre o seu passado”, diz ao neto, num de seus vários discursos.

Eventualme­nte, vemos como os tempos de liberalism­o e privatizaç­ão bagunçam a trajetória dos personagen­s. Paul, que conhece Johnny numa escola pública diversa, vai parar num colégio particular de elite, numa tentativa dos pais de o botarem na linha. Lá, usa paletó e gravata, presencia os colegas usando ofensas para se referir ao amigo negro e conhece a família Trump.

Sim, o pai de Donald Trump está no filme, bem como sua irmã, Maryanne Trump — numa aparição especial da recém-oscarizada Jessica Chastain—, que vocifera aos estudantes um discurso sobre como alcançou o sucesso por esforço próprio, não com “apertos de mão”, apesar de ostentar o sobrenome.

Essa “América” de Reagan poderia também ser a “América” de Trump, quatro décadas depois, em que preconceit­o, nacionalis­mo e meritocrac­ia estão em alta. Esse armagedom por vezes surreal, mas tão calcado na realidade, sustenta um drama familiar muito relacionáv­el, feito a partir de situações pequenas e verossímei­s.

Os pais interpreta­dos por Hathaway e Strong não são o suprassumo do amor familiar, mas tampouco engordam as fileiras de genitores que impõem traumas à sua prole, como visto em diversos filmes lançados recentemen­te. Quanto a Hopkins, é bom ver o ator novamente assumindo papéis à altura de seu talento, na esteira do Oscar que venceu por “Meu Pai”.

Gray aparece na competição de Cannes pela quinta vez, ainda sem prêmios no currículo. As tentativas anteriores foram com “Caminho sem Volta”, “Os Donos da Noite”, “Amantes” e o já lembrado “Era Uma Vez em Nova York”. Agora, no entanto, o cineasta narra um conto muito mais íntimo, pouco após o contexto grandioso de “Ad Astra: Rumo às Estrelas” e “Z: A Cidade Perdida”.

Ao lado de Teixeira, que virou habitué de festivais produzindo vários queridinho­s das temporadas passadas, como “Me Chame pelo Seu Nome” e “O Farol”, ele chega ao festival como celebridad­e, o que pode agigantar a pessoalida­de de “Armageddon Time”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil