Em seu primeiro filme, Eddie Murphy protagoniza cena envolvendo o black russian
Vestido num impecável terno Armani, Eddie Murphy, um detento fingindo ser detetive, entra num bar coalhado de rednecks, com a bandeira confederada ao fundo. A música do sul escravocrata ocupa o espaço com eletricidade ariana. Caubóis e cowgirls batem botas levantando poeira do chão, num frenesi de chapéus e franjas.
Murphy abre espaço entre olhares de desaprovação e encosta no balcão. É seu primeirofilme,depoisdedoisanosfazendorirnosaturdaynightlive. A gana é grande. E ele não perde o momento. Pede uma dose de vodca ao barman carrancudo. Escorrendo racismo pelaboca,estesugerequeomelhorseriaumblackrussian,coquetelcomvodcaelicordecafé.
Murphy bate a mão aberta no balcão várias vezes e exagera a risada com ironia. “Boa piada, hahahaha. Black russian! Entendi! Porque sou black!” O barman, fumegando, serve a vodca. O ator entorna o copo. E então o atira no grande espelho do bar, estilhaçando a balbúrdia suprematista, refletida em mil pedaços. A banda para de tocar, todo mundo para de dançar.
O que se segue é uma verdadeira catarse. Murphy humilha os órfãos ressentidos da Guerra Civil e da KKK e se impõe com moral, sem amassar o disfarce.
O filme, já adivinharam os que viam Sessão da Tarde, é “48 horas” (1982), de Walter Hill. Não é grande coisa, ainda que tenha ganhado certo status cult. O humor é ingênuo e datado. As partes mais engraçadas são involuntárias, protagonizadas pela franja fru-fru de Nick Nolte, que faz contraste com sua espremida cara de machão. Mas tem essa cena, que vale todo o resto.
Quarenta anos atrás, Murphy/nolte atualizavam a fórmula da dupla que se odeia a princípio para depois se entregar ao bromance. Traziam o elemento do mix racial, tentativa desajeitada de disfarçar a ausência de negros protagonistas nos filmes de Hollywood. Com um detalhe significativo: como acontecia com Oscarito e Grande Otelo, o nome do ator branco sempre vinha primeiro nos cartazes e letreiros, quando não maior.
Talvez a mais famosa dessas duplas tenha sido a de Danny Glover e Mel Gibson, em “Máquina Mortífera” (1987). Curiosamente, um militante de esquerda e um direitoso homofóbico. Mais adiante haveria Will Smith e Tommy Lee Jones na franquia “Homens de Preto” (1997). O rosto de Smith, aliás, não aparece entre o elenco quando pesquisamos o filme no Google. Guardadas as proporções, lembra os métodos da KGB de apagar a imagem dos desafetos.
O que torna Murphy especial é algo que Chris Rock tenta imitar, nem sempre com o mesmo efeito: o sorriso largo, tão malicioso quanto boa praça, com aquele diastema que lhe confere um ar juvenil. Aliado à velocidade verbal e uma esperteza cativante, dá um nó na cabeça dos coadjuvantes, pobres vítimas. Ele está falando sério ou está tirando sarro? O espectador sabe. Ou acha que sabe.
O estimulante ainda apareceria no blockbuster “Um tira da pesada” (1984), em que Murphy desbarata uma quadrilha de traficantes de cocaína depois que vê o pó da rubiáceanumarmazémusadopelos bandidos.équeocafémascara o cheiro da droga, enganando os cães farejadores da polícia.
Pois não se engane, o black russian, apesar da tentativa de insulto em “48 horas”, está longe de ser ruim. É uma das dezenas de boas maneiras de servir vodca, um hit oitentista nos balcões norte-americanos, quando o medo da bomba nuclear não cancelava cardápios.
BLACK RUSSIAN
• 60 ml de vodca
• 30 ml de licor de café
• Combine os ingredientes num copo old-fashioned com gelo