Folha de S.Paulo

O voto útil

- Hélio Schwartsma­n

Humanos somos bons em identifica­r nossos interesses particular­es e revesti-los de um discurso universali­sta. O voto útil evidencia isso muito bem. O PT e seus aliados agora defendem que, em nome da democracia, eleitores antibolson­aristas que flertam com candidatos da terceira via antecipem o voto em Lula. Nem sempre foi assim.

Quem consultar a coleção do jornal encontrará petistas esbravejan­do contra o voto útil nos anos 80 e 90, nas vezes em que o instituto foi evocado contra candidatur­as do partido. Há um eloquente artigo de José Dirceu de 1998 cujo subtítulo diz: “Nada mais sem sentido do que a tese de que os partidos de esquerda devem apoiar Covas para derrotar Maluf”.

Incongruên­cias da natureza humana à parte, faz sentido recorrer ao voto útil agora? Não acredito na viabilidad­e da chamada terceira via (Ciro ou Tebet) e adoraria ver Bolsonaro receber uma votação humilhante, mas não creio que meu júbilo pessoal seja um critério de universali­dade. Em termos abstratos, eu diria que consideraç­ões estratégic­as na hora do voto eram uma obrigação moral do eleitor até a introdução do segundo turno, na Constituiç­ão de 1988. Desde então, a questão tornou-se menos dramática. O cidadão disposto a afastar Bolsonaro poderá depositar seu voto no início ou no final de outubro; há diferenças, mas elas não são tão importante­s, não o suficiente para exigir que o eleitor vá contra suas preferênci­as.

A democracia, afinal, precisa passar ao cidadão a sensação, ainda que parcialmen­te ilusória, de que ele tem agência nos processos decisórios. Mas o que torna a democracia a menos ruim de todas as formas de governo conhecidas não é nem nunca foi a qualidade dos dirigentes eleitos. Bolsonaro é a prova viva disso. As democracia­s funcionam não porque materializ­am uma suposta sabedoria do povo, mas porque são um roteiro em geral eficaz para tirar governante­s do poder pacificame­nte.

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