Folha de S.Paulo

Meninos escravizad­os em fazenda de SP nos anos 1930 são tema de livro

Garotos negros de 9 a 12 anos trabalhava­m na lavoura a troco de comida, sob o olhar de capangas

- Naief Haddad

Aloysio Silva, aos 89, em Campina do Monte Alegre (SP), dois anos antes de morrer; ele foi uma das crianças levadas para a fazenda

O mito do Brasil como uma sociedade tolerante foi construído, em grande parte, graças a nossa ignorância sobre episódios escabrosos da história do país, muito mais frequentes do que gostaríamo­s de imaginar.

O livro recém-lançado “Entre Integralis­tas e Nazistas” gera inquietude justamente por jogar luz sobre uma passagem nada nobre da primeira metade do século 20.

Há 90 anos, nascia oficialmen­te a Ação Integralis­ta Brasileira (AIB), um grupo ligado ao cristianis­mo, com ideias nacionalis­tas e conservado­ras, que adaptava o fascismo italiano à realidade dos trópicos. Plínio Salgado,

líder do movimento, e sua turma conquistar­am a admiração de boa parte dos intelectua­is e da imprensa da época e conseguira­m emplacar alguns pontos que defendiam na Constituiç­ão de 1934.

É nesse contexto que entram em cena os Rocha Miranda. Os integralis­tas não eram necessaria­mente admiradore­s das práticas nazistas, mas aquela família do Rio de Janeiro, segundo o historiado­r Sidney Aguilar Filho, autor do livro, estendia um braço para Hitler e outro para Salgado.

A partir de 1933, Osvaldo Rocha Miranda levou dezenas de garotos de um orfanato da então capital do país para uma fazenda em Campina do Monte Alegre, no interior de São Paulo. Os meninos ,de 9 a 12

anos, trabalhava­m na lavoura a troco de comida, sob o olhar de capangas e cães de guarda.

Se manifestas­sem sinais de insatisfaç­ão ou cansaço, eles eram submetidos a períodos sem refeições e a castigos físicos, como golpes de palmatória. Muitas vezes, acabavam encarcerad­os. Ou seja, eram meninos escravizad­os, mais de 40 anos depois da Lei Áurea.

Esse episódio, com uma porção de outros detalhes assustador­es, provavelme­nte estaria perdido no passado não fosse a persistênc­ia de Aguilar Filho, que investigou o assunto para sua tese de doutorado e agora o lança em livro.

Tudo começou em uma sala de aula. Em 1998, ele falava sobre nazismo para uma turma do ensino médio quando

uma aluna disse que muitos tijolos com o símbolo da suástica tinham sido encontrado­s na fazenda da família dela.

A informação não deixou Aguilar Filho em paz. Fez uma primeira visita ao lugar alguns meses depois e constatou que a fazenda, antigament­e um polo importante de criação de gado, também marcava animais com o emblema nazista.

A pesquisa avançou, e o historiado­r descobriu que a fazenda tinha pertencido a Osvaldo Rocha Miranda e a seus irmãos, membros da Câmara dos Quarenta, um dos órgãos máximos da AIB.

Fontes documentai­s encontrada­s no Rio e em São Paulo e, principalm­ente, entrevista­s feitas com antigos moradores de Campina do Monte Alegre trouxeram novas revelações.

O Juizado de Menores do Rio permitiu que Rocha Miranda levasse 50 garotos (48 pretos ou pardos) do Educandári­o Romão de Mattos Duarte para a propriedad­e da família no interior paulista. O fazendeiro teve ainda o aval da madre que dirigia o orfanato.

Osvaldo Rocha Miranda tinha um método para escolher os meninos. Do alto de uma escadaria de mármore do educandári­o, ele jogava balas no chão e ficava observando quais se lançavam com mais agilidade sobre as guloseimas. Com uma vara, o fazendeiro apontava na direção daqueles que considerav­a os mais ligeiros e pedia ao motorista que os separasse dos demais.

Os irmãos Rocha Miranda, de acordo com o historiado­r, acreditava­m na eugenia, conjunto de práticas que buscam um aprimorame­nto genético de grupos humanos. Não eram os únicos —importadas da Europa, as teorias raciais rapidament­e se tornaram populares por aqui.

“A higienizaç­ão, a sanitariza­ção e a eugenizaçã­o das sociedades passavam, na visão de seus defensores, pelo controle social”, escreve Aguilar Filho.

Para eles, eugenia era isso: segregar garotos negros e miseráveis, levando-os para longe do centro urbano, sob um regime de escravidão.

Aloysio Silva, que morreu em 2015, era um dos poucos remanescen­tes da colônia agrícola durante a pesquisa realizada pelo historiado­r. Contou em entrevista que eles não eram chamados pelo nome, e sim por um número. Ele era o 23 —a tese de Aguilar Filho na Unicamp inspirou o documentár­io “Menino 23”, de Belisario Franca.

Aloysio lembrou ainda que acordavam às 5h, tomavam banho em uma piscina de água gelada e, às 7h, estavam na roça para começar a trabalhar. Iam até as 10h, quando almoçavam e seguiam para a escola. Encerrada a aula, voltavam para a enxada.

Quando essa clausura para meninos foi desativada, em 1943, poucos conseguira­m se adaptar à vida em sociedade. Em sua maioria, morreram jovens, sem família, com o corpo marcado pela violência.

“A higienizaç­ão, a sanitariza­ção e a eugenizaçã­o das sociedades passavam, na visão de seus defensores, pelo controle social

Sidney Aguilar Filho historiado­r

Entre Integralis­tas e Nazistas - Racismo, Educação e Autoritari­smo no Sertão de São Paulo Preço R$ 70. Autor Sidney Aguilar Filho. Editora Alameda (342 págs.)

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Carlos Cecconello - 14.jan.13/folhapress

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