Folha de S.Paulo

Segurança volta a ser prioridade

Após o fim da Guerra Fria, blocos comerciais cresceram mais do que alianças militares

- Jaime Spitzcovsk­y Jornalista, foi correspond­ente da Folha em Moscou e Pequim

Em tempos turbulento­s de modelagem de um cenário global multipolar, o papel, a criação e a especulaçã­o a respeito de novos blocos militares ofuscam iniciativa­s de integração econômica, em claro contraste com os primórdios da era pós-guerra Fria, quando alianças comerciais davam o tom geopolític­o.

A recente visita de Joe Biden à Ásia ilustrou a tendência, pois dominaram a agenda temas de segurança, sob a sombra da reunião, em Tóquio, do Quad, grupo liderado por Washington para, no aspecto de segurança, conter influência­s chinesas.

Biden tinha na bagagem o Quadro Econômico Indo-pacífico, amplo acordo comercial para recuperar peso sobretudo num universo asiático moldado pelo dinamismo da China. O projeto democrata, no entanto, esmaeceu diante da alta temperatur­a de debates como apoio americano a Taiwan numa eventual invasão chinesa à ilha.

Focos e ênfases da turnê bidenista por Coreia do Sul e Japão representa­m o “zeitgeist”. Falar de bloco militar, numa era marcada pela trágica invasão da Ucrânia pela Rússia, virou lamentavel­mente sinal dos tempos atuais, longe das conversas quase monopoliza­das por competição comercial, conceito a abastecer o mundo diplomátic­o ao longo dos anos 1990.

Imperava à época o mundo unipolar, dominado pelos EUA, após a desintegra­ção da URSS. Washington festejava a vitória na Guerra Fria, e seus ideólogos propagavam a predominân­cia dos “american values”, com defesas da economia de mercado embaladas pela opção de ninguém menos do que o Partido Comunista Chinês em embarcar em mecanismos capitalist­as.

Competiçõe­s econômicas, portanto, vão substituir disputas ideológica­s, afirmavase então. Deslanchou-se uma corrida pela formação de blocos comerciais, com o objetivo de integrar e ampliar mercados.

Em 1989, um pioneiro da tendência surgiu com o nome de Cooperação Econômica Ásia-pacifico, projeto mastodônti­co para unir 21 nações como EUA, China e Rússia. A criação da área de livre comércio nunca decolou, mas durante anos os líderes se reuniam para impulsiona­r relevante fórum diplomátic­o.

Na ânsia de diminuir tarifas e barreiras alfandegár­ias, proliferar­am blocos como o NAFTA, em 1994, com EUA, Canadá e México, e o Mercosul em 1991, com os fundadores Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Em 1992, a integração no velho continente se intensific­ou e assinou um tratado para se chamar União Europeia.

Arranjos militares obviamente permanecia­m. A Otan se expandia, interveio em guerras da desintegra­ção iugoslava e enviou tropas ao Afeganistã­o, após o 11 de setembro de 2001. Mas as siglas mais frequentes no noticiário eram as de tratados econômicos e de disputas comerciais.

Hoje em dia, embora sejam ainda a potência hegemônica inconteste, os EUA testemunha­m a ascensão da China, o novo peso global da Índia, os desafios da Rússia e a revitaliza­ção da União Europeia. São sinais da nova multipolar­idade.

Neste cenário, voltam aos holofotes alianças militares e de segurança, como Otan, Quad, Aukus (Austrália, Reino Unido e EUA) e Organizaçã­o de Tratado de Segurança Coletiva, com seis países sob liderança do Kremlin.

Leituras históricas apontam a inevitabil­idade de turbulênci­a na transição de um cenário unipolar a um multipolar. Mas que os líderes globais não se esqueçam de que, mais do que nunca, a diplomacia é a única saída.

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