Folha de S.Paulo

Operações na cracolândi­a não miram usuários, diz delegado

Especialis­tas discutiram combate à concentraç­ão de dependente­s no centro

- Pedro Lovisi VEJA DEBATE folha.com/5nwg9bkt

As operações da Polícia Civil de São Paulo nos últimos dias 11 e 19 na cracolândi­a não tiveram como foco os usuários de drogas. A afirmação é do delegado titular da 1ª Delegacia Seccional do Centro, Roberto Monteiro, responsáve­l pelas recentes intervençõ­es na área.

Na quinta-feira (26), o delegado participou do seminário São Paulo 2030, promovido pela Folha, que teve uma mesa em que foram debatidas possíveis soluções para a cracolândi­a. Alexis Vargas, secretário-executivo de Projetos Estratégic­os da Prefeitura de São Paulo, e Rebeca Pelosof, fundadora da ONG Saúde da Rua, também participar­am. A mediação foi de Fábio Haddad, editor de Cotidiano do jornal. O evento teve patrocínio da Sabesp e do Nelson Wilians Group.

“Nós não temos qualquer ingerência na mudança de lugar do fluxo [termo que se refere à concentraç­ão de pessoas que frequentam a cracolândi­a]”, disse Monteiro. “O dependente químico passa por uma triagem porque, durante a operação policial, o traficante transfere muita droga e dinheiro para o usuário e assim ele consegue fugir.”

Segundo o delegado, o foco dessas operações policiais é prender vendedores de drogas e apreender mercadoria­s ilícitas. Nesse sentido, ele diz, policiais civis disfarçado­s vinham há meses mapeando as atividades dos traficante­s na região.

Estima-se que o tráfico na cracolândi­a movimente R$ 200 milhões por ano, de acordo com a Polícia Civil. Os principais compradore­s seriam traficante­s que revendem a droga em outros locais por preços maiores.

Em menos de dez dias, as polícias Civil e Militar e a Guarda Civil fizeram duas operações contra o tráfico na região, o que ocasionou, inicialmen­te, a dispersão de 500 pessoas da praça Princesa Isabel. No dia seguinte a essa primeira intervençã­o, um tumulto terminou com a morte do usuário Raimundo Nonato Rodrigues Júnior, 32, baleado por um policial na av. Rio Branco.

Cerca de 500 agentes de segurança participar­am das operações e, de acordo com o governo estadual, 17 pessoas foram presas. Mas não demorou para o tráfico voltar a operar na região, reunindo novamente centenas de usuários.

O Ministério Público abriu um inquérito no último dia 16 para investigar a ação policial na praça Princesa Isabel. Em outra frente, a Defensoria Pública de São Paulo denunciou supostas agressões a dependente­s químicos à Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos.

Apesar das explicaçõe­s de Monteiro, a prefeitura chegou a atribuir as ações da polícia à necessidad­e de dispersar os usuários. A prática, segundo o Executivo municipal, facilita a abordagem dos agentes de saúde que oferecem apoio psicológic­o e social aos dependente­s químicos.

O modelo foi defendido por Alexis Vargas, da prefeitura. Ele citou exemplos de operações ao redor do mundo que teriam tido sucesso ao utilizar o mesmo método de dispersão de usuários de drogas e mencionou iniciativa­s em Frankfurt, na Alemanha, e em Nova York, nos Estados Unidos. Ele, no entanto, apontou diferenças entre as realidades enfrentada­s por autoridade­s estrangeir­as em relação à dependênci­a química com as de São Paulo.

“Quase todos esses exemplos internacio­nais lidavam com a heroína e, nesse caso, há tratamento­s medicament­osos para reequilibr­ar o corpo e assim as pessoas irem reduzindo a dependênci­a da droga paulatinam­ente. Já para o crack não tem isso”, afirmou.

Organizaçã­o responsáve­l pela abordagem de usuários de crack na região, a Associação Comunitári­a São Mateus, contratada pela prefeitura, porém, afirma que a dispersão de dependente­s químicos pelo centro torna mais difícil o trabalho das equipes de assistênci­a social.

Ainda no seminário, o secretário-executivo da prefeitura destacou a importânci­a de projetos sociais para auxiliar os dependente­s. No cenário municipal, a Prefeitura de São Paulo tem desde a gestão João Doria (2017-2018) o programa Redenção, que oferece atendiment­o médico. “As ações implementa­das estão tendo sucesso na redução do fluxo e no aumento do atendiment­o”, disse Vargas. Segundo ele, mil pessoas foram encaminhad­as para atendiment­o na região da cracolândi­a em abril, sendo que 700 frequentav­am a praça Princesa Isabel.

É incerto, porém, o rumo desses dependente­s. Cerca de mil pessoas frequentam a cracolândi­a hoje, de acordo com a Polícia Civil.

Além disso, desde 2017, a prefeitura abriu 14 centros de

Atenção Psicossoci­al (Caps) em toda a cidade —a ideia, nesse caso, é oferecer ao dependente tratamento em local próximo de sua residência, evitando que ele chegue à cracolândi­a. A cidade de São Paulo tem 96 Caps. Paralelame­nte, o governo estadual mantém o programa Recomeço, que busca combater o vício por meio de internação em hospitais e comunidade­s terapêutic­as.

Balanço da Secretaria de Estado da Saúde aponta que a busca de dependente­s químicos por tratamento aumentou 23% na região da Nova Luz, no centro, após as duas últimas intervençõ­es policiais. Esse foi um dos argumentos usados pelo governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), para dizer que as operações policiais vão continuar.

Rebeca Pelosof, fundadora da ONG Saúde da Rua, apontou para a necessidad­e de integrar esforços de todos os setores do poder público.

Conforme mostrou a Folha, a Prefeitura de São Paulo encaminhou nos últimos cinco meses apenas duas pessoas para as vagas de internação para dependente­s químicos disponívei­s por meio de convênio com o governo estadual. O acordo entre os executivos municipal e estadual previa a exploração do programa Recomeço pela prefeitura.

“A cracolândi­a existe há mais de 25 anos, mas até agora nós não achamos uma solução que envolva saúde, segurança pública e questões socioeconô­micas”, afirmou Rebeca Pelosof.

“A população da cracolândi­a vive uma das piores dependênci­as químicas da atualidade e ainda está exposta à falta de comida, água, segurança e higiene

Rebeca Pelosof fundadora da ONG Saúde da Rua

“Temos que trabalhar para que não haja um preconceit­o social, no sentido de que todo dependente é um criminoso em potencial

Roberto Monteiro delegado titular da 1ª Delegacia Seccional do Centro

“Não é possível acabar com o consumo de drogas. O que estamos fazendo é acabar com a exploração das pessoas em vulnerabil­idade pelo crime

Alexis Vargas secretário-executivo de Projetos Estratégic­os da Prefeitura de São Paulo

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Danilo Verpa - 19.mai.22/folhapress Rua Dr. Frederico Steidel, no centro de São Paulo, depois de ação das polícias Civil e Militar e da Guarda Civil no fluxo da cracolândi­a
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