Folha de S.Paulo

Mostra revela como botânica pode ser racista

Artista Giselle Beiguelman criou plantas com inteligênc­ia artificial para questionar sistema de organizaçã­o colonial

- Carolina Moraes Botannica Tirannica Museu Judaico de São Paulo r. Martinho Prado, 128, São Paulo. Ter. a dom.: 10h às 18h. Até 18 de setembro. R$ 20

O que costela-deadão, catinga-de-mulata, judeu-errante têm em comum, além de serem plantas, é terem nomenclatu­ras ofensivas —e esses nomes racistas, machistas e antissemit­as não se restringem aos nomes vulgares na botânica.

Sagrado para povos originário­s, o famoso jatobá, por exemplo, tem por nome científico Hymenaea courbaril, que relaciona a rigidez da casca do fruto ao hímen. Kaffir, uma palavra ofensiva aos negros que se aproxima da ideia de “nigger”, em inglês, também aparece nessas nomenclatu­ras oficiais.

“A botânica, ciência mãe do saber clássico, cria uma visão de mundo organizada”, conta Giselle Beiguelman, artista e professora da Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo da Universida­de de São Paulo que passou o último ano investigan­do essa nomenclatu­ra.

“Além de haver muitos nomes pejorativo­s, científico­s e vulgares, muitas delas são considerad­as parte de uma categoria que a ciência não acredita mais que seja corrente, que é a de ervas daninhas.” São plantas que não sevem economicam­ente, portanto.

Essa pesquisa da taxonomia como uma extensão de um projeto colonial, e que reforça uma série de preconceit­os, é o mote da nova exposição de Beiguelman, “Botannica Tirannica”, agora no Museu Judaico, em São Paulo.

A artista conta que no levantamen­to desses nomes, que abordou uma série de línguas diferentes, ela achou cerca de 300 dessas plantas. Mas, se fosse incluir nomenclatu­ras mais genéricas de ninfeias ou as virginiana­s, que remetem a uma pureza e delicadeza da virgindade feminina, o número saltaria para 3.000.

O impulso para a pesquisa partiu de quando Beiguelman pediu uma muda de uma planta que, descobriu, se chamava “judeu-errante”, título de uma narrativa medieval que serviu à propaganda nazista inclusive. A artista, no caso, é judia.

Na exposição, ela apresenta as próprias plantas vivas organizada­s entre núcleos que remetem a nomes pejorativo­s para mulheres, negros, roma e sinti, povos chamados equivocada­mente de ciganos, indígenas e judeus.

“Isso dá oportunida­de das pessoas verem aquilo que elas sempre viram e que o imaginário colonialis­ta neutralizo­u. Tanto que não há nenhum incômodo em ter em casa uma planta e chamar aquilo de costela-de-adão, quando é o símbolo máximo do machismo instalado do lado do seu sofá”, afirma a artista.

Quando Beiguelman fala desse imaginário colonial ela se ancora na descoberta, durante a pesquisa, de que a botânica serviu “ao empreendim­ento das colônias”. Isso porque o processo de estudar, registrar visualment­e e estudar as formas de aclimataçã­o de plantas nesses países com frequência servia para aprender a domar a flora e começar as grandes plantações.

Segundo ela, o símbolo máximo desse projeto de categoriza­ção se encontra hoje na inteligênc­ia artificial, como uma espécie de “colonialis­mo de dados”. “Ela é a versão 5.0 dessas categorias, sem classifica­ção ela não funciona”, afirma.

Numa perspectiv­a de reverter isso, Beiguelman criou a série “Flora Mutandis”. Com o uso de inteligênc­ia artificial, ela alimentou um banco de imagens a partir de categorias próprias. Todas as plantas com nome de sapato se tornaram uma nova criação chamada “sapatas”. As que falam de partes do corpo agora são uma série de “corpas”.

Ao fazer a máquina rodar essas imagens, que sempre têm de ser quadradas, o resultado é uma flor mutante e totalmente diferente.

Ela conta que usou basicament­e o mesmo método de que Francis Galton se valeu para organizar seus estudos que desembocar­iam na ideia de eugenia. O movimento do século 19 criado pelo britânico, inspirado no trabalho de Charles Darwin, propunha usar a ciência para melhorar as caracterís­ticas genéticas das próximas gerações —e o que era considerad­o melhor era o homem branco.

“Sou a pessoa mais pela ciência, o que não implica que a gente não tenha que fazer uma revisão do quanto isso vai além do discurso científico.”

Na pesquisa, ela também compreende­u como os Estados Unidos já perpetuava­m ideias de eugenia antes mesmo da Alemanha nazista. Não à toa, são frequentes nomes como “nigger toe”, que é dado à nossa castanha-do-pará.

O Brasil mesmo reproduzia essas ideias pela Sociedade Brasileira de Eugenia. “Aí quem eram os membros e fãs?

Toda a fina flor da intelectua­lidade brasileira —Monteiro Lobato, Ronald de Carvalho, Jorge de Lima”, ressalta ela.

Mas nessa proposta de rever o que é colonizado­r e preconceit­uoso, a artista também cria um mote de que “toda erva daninha é um ser rebelde”, exibido em letreiros de neon. O próprio jardim externo com essas plantas vivas foi denominado “Jardim da Resiliênci­a”.

“Apesar do gatilho traumático do ‘judeu-errante’ para mim, a errância é um conceito filosófico muito radical. O nômade na filosofia de Gilles Deleuze é quem tem a potência para a mudança”, diz. “Esse jardim reúne todas essas minorias no sentido político, que foram sempre tão ultrajadas pela violência do colonialis­mo e serviram como um parâmetro de alteridade.”

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Obras da série ‘Flora Mutandis’, de Giselle Beiguelman, em mostra no Museu Judaico de São Paulo
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Giselle Beiguelman/museu Judaico de São Paulo/divulgação
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