Folha de S.Paulo

Piscar (;) e chorar (;–;)

Num tempo de exclamaçõe­s, o ponto e vírgula é uma espécie em extinção

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

O ponto e vírgula corre risco de extinção: o simpático sinal de pontuação não foi usado nos últimos três dias na Folha. Até os colchetes, mais afeitos à linguagem matemática, apareceram; ponto e vírgula que é bom, nenhunzinh­o.

Em contrapart­ida, abundam os pontos de exclamação, enterrados no jornal pelo bate-estaca de colunistas fanfarrões. Sem argumentos, e de maus bofes, infligem seu ponto de vista aos gritos: “Quem entende disso sou eu, sua anta! Vê se te manca!”.

Adicione-se ao estrondo exclamativ­o o ponto final por extenso e, pronto, eis Bolsonaro, o Mandão. “E ponto final!” urra ele após excretar meia dúzia de mentiras, barrando no berro qualquer diálogo. O ponto de exclamação impõe ordem unida, sujeita.

Escasseiam também as reticência­s, irônicas ou não; o travessão, que abre uma fala ou completa o escrito; até os parêntesis, que encapsulam outro sentido, como faz Drummond em “(não cantarei o mar: que ele se vingue de meu silêncio nesta concha)”.

O emprego cada vez mais rarefeito de sinais de pontuação significa algo? Perguntar isso não é procurar pelo em ovo? Afinal, pontos e vírgulas são ciscos que, ao se soltarem da casca imaculada do texto-ovo, entram no olho e atrapalham a leitura...

A pontuação é uma forma histórica. Os livros de Aristótele­s, Platão e da Bíblia não a tinham; nem minúsculas; nem espaço entre as palavras! Deus não escrevia certo por linhas tortas; escrevia embolado. O evangelho de João começava assim:

NOPRINCÍPI­OERAOVERBO­EOVERBOEST­AVAEMDEUSE­OVERBOERAD­EUS.

Foi com tijolos textuais como esse que se construiu o saber ocidental. Porque, como disse Aristótele­s, OHOMEMÉUMA­NIMALPOLÍT­ICO. Gregários, os homens adotam convenções para se comunicar e mudar; mudar inclusive as convenções

Foi o que fez Aldus Manutius, o editor veneziano que, em fevereiro de 1494, inventou o ponto e vírgula. Quem conta sua história é a professora Cecelia Watson, num livro delicioso, “Semicolon: Past, Present, and Future of a Misunderst­ood Mark” (Ecco Press, 224 págs.).

Renascenti­sta, Manutius queria populariza­r o conhecimen­to. Não havia padronizaç­ão nem academias que policiasse­m o idioma. Era uma algazarra. Cada um pontuava como lhe desse na telha.

Ao publicar “O Etna”, ensaio em forma de diálogo sobre o vulcão, de autoria do cardeal Pietro Bembo, Manutius teve a divina ideia de captar a elocução do distinto prelado. Criou o símbolo gráfico que marca pausa maior que a da vírgula e menor que a do ponto.

Com a obra pronta, vieram as regras: o ponto e vírgula separa orações numa mesma frase; organiza listas; economiza conectivos (e) ou adversativ­as (mas). Permaneceu perene, porém, o preceito básico —registrar um silêncio específico, advindo da linguagem oral.

A engenhoca de Manutius ganhou o mundo. “Moby-dick” tem 4.000 pontos e vírgulas, informa Cecelia Watson, “um a cada 52 palavras”. Machado de Assis, mais comedido e certeiro, mereceria o título de mestre do ponto e vírgula na periferia do capitalism­o.

Henry James não escrevia sem ter ao lado da escrivanin­ha um barril de pontos e vírgulas. Chegou a inverter a ordem de importânci­a entre pontuação e palavras. Numa rara entrevista, ao Times, insistiu para que o repórter anotasse sua “pontuação, bem como as palavras”.

A coisa mudou no século passado. Orwell, Barthelme, Chandler e tantos outros desprezara­m o miniponto de Manutius. Vonnegut teve o topete de dizer que pontos e vírgulas são “hermafrodi­tas que não representa­m absolutame­nte nada”.

É meio assim no Brasil. Nos seis contos exímios que Dalton Trevisan publicou e distribuiu no início do ano, num livreto de 32 páginas, não há um único ponto e vírgula. Dalton deixa que seus personagen­s e leitores deem uma paradinha onde bem entenderem.

Em contrapart­ida, o ponto e vírgula virou emoji, um derivado dos signos de pontuação. Dois pontos e vírgulas, com um travessão no meio, mostram uma carinha derramando uma lágrima de cada olho ;–;. Sozinho, representa uma piscada ;.

No ensaio “Sinais de Pontuação”, Adorno prefigurou esse uso figurativo. O ponto de exclamação é um dedo em riste ameaçador, disse. Os dois pontos abrem a boca, “e coitado do escritor que não souber saciá-los”. “Marotas e satisfeita­s”, as aspas “lambem os lábios”.

Para Adorno, o ponto e vírgula parece “um bigode caído” e passa “um sabor rústico”. Como quase ninguém mais tem bigode, o ponto e vírgula, com tantos serviços prestados, está à beira do desuso.

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Bruna Barros

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