Folha de S.Paulo

Pessoas matam, mas armas também

Restrição e desarmamen­to funcionam, nos EUA, no Brasil ou em qualquer outro lugar

- Rodrigo Zeidan Professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ

Os dois principais problemas do Brasil são a distribuiç­ão de renda e a violência. O resto é secundário. As duas tragédias desta semana, a chacina pelo Estado no Brasil e a carnificin­a de crianças nos EUA, mostram como precisamos rever toda a abordagem sobre crimes no Brasil e no mundo.

Obviamente, isso não deve acontecer neste governo, cujas ideias sobre desarmamen­to vêm de quem assistiu a muitos filmes de faroeste e acha que basta dar uma arma para que uma pessoa saiba se defender. Isso não é verdade. Acesso às armas aumenta homicídios e suicídios e não tem nenhum efeito sobre prevenção de crimes. Assim como em um faroeste, as chances de um passante sobreviver a um confronto com um criminoso com uma arma é quase zero.

Política pública não se faz com anedotas do sujeito que afugentou um bandido porque tinha um trezoitão. Sabe a frase batida de que “armas não matam, são seres humanos que matam”? Não só está errada como é consenso científico de que facilidade de acesso a armas aumenta crimes numa quantidade cavalar.

Em artigo no principal periódico de economia, Duggan (2001) mostrou inequivoca­mente como aumento de posse de armas leva a mais homicídios. Desde então, inúmeros outros estudos confirmara­m o fato. Pior, o efeito está aumentando, pois, como mostram Braga e coautores (2021), as armas modernas são mais letais e falham menos.

Restrição e desarmamen­to funcionam, seja nos EUA, seja no Brasil, seja em qualquer outro lugar. Vários países tornaram regras muito mais rígidas depois de massacres como o de Uvalde. Austrália, Alemanha, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e Noruega, para ficar em alguns exemplos, viram carnificin­as como a do Texas.

Na Austrália, depois que um cidadão abriu fogo, matando 35 pessoas em 1996, o governo fez muito mais que proibir o porte de armas. Confiscou, recomprand­o forçadamen­te a maior parte das armas no país. Muitas pessoas, mesmo sem cair na categoria do confisco, entregaram suas armas voluntaria­mente para o Estado. O resultado? Um dos países mais seguros do mundo. Antes, havia um massacre do tipo a cada 18 meses. Desde então, houve somente uma tragédia.

E não é só homicídio. Em um artigo de Anestis e Houtsma (2018), os autores mostraram que a diferença de taxas de porte de arma nos estados americanos explica 92% da variação da taxa de suicídios. “Ah, mas no Brasil precisamos de mais que confiscar armas.” Sim, mas Schneider (2021) mostrou que o referendo do desarmamen­to no Brasil, por si só, reduziu assassinat­os por arma de fogo em 12,2% e tentativas de homicídio em 16,3%. Na Colômbia, com campanha parecida, a redução foi de mais de 20%.

Desarmamen­to é só um passo. Precisamos de confiança da sociedade no governo e viceversa, além de coordenaçã­o entre Poderes. Medellín, nos anos 1990, era uma das cidades mais violentas do mundo, com 380 homicídios por 100 mil habitantes. Hoje, a taxa (entre 20 e 25) é menor que a do estado do Rio, onde quase 5.000 pessoas foram mortas em 2021 (28 assassinat­os por 100 mil pessoas).

É possível mudar. Nova York era um antro de crimes na década de 1970. Copenhague sofria com ataques de gangues. Mas nunca, em nenhuma cidade do mundo, a solução passa por chacina de cidadãos pelo Estado. Nada vai vir desse governo. Mas onde estão as propostas dos candidatos? Precisamos de soluções de segurança pública. Para ontem.

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