Folha de S.Paulo

Ainda repetimos o mesmo erro de não tratar um surto de vírus local como um problema global

- Atila Iamarino

Com o mundo sensibiliz­ado pela Covid-19, vemos a atenção se voltando à varíola dos macacos ou “monkeypox”. Desde a detecção do primeiro caso no Reino Unido, 372 casos já foram diagnostic­ados em mais de 20 países fora do continente africano, entre Europa, Oriente Médio, Américas —incluindo nossa vizinha Argentina— e Austrália. E mais casos devem se seguir, agora que sabemos o que procurar, já que seus sintomas e feridas são bem evidentes.

Embora ela seja causada por um vírus da mesma família da varíola humana, isso joga a nosso favor por enquanto. Por ser conhecido, já temos uma boa noção da sua transmissã­o, do diagnóstic­o e como combatê-lo. Sua transmissã­o acontece principalm­ente por contato direto ou indireto com gotículas de saliva e outros fluidos corporais, ou mesmo lençóis, toalhas e outros materiais que estiveram em contato com alguém com as feridas que o vírus causa. O que é uma forma de contágio mais evitável do que pelo ar.

Também por ser um vírus da família da varíola, a vacina contra a varíola humana que já temos funciona bem contra ele. O que permite estratégia­s como a que o Reino Unido tem feito, imunizando com a vacina da varíola tradiciona­l contatos próximos de casos confirmado­s e suspeitos de varíola de macacos. Apesar do susto e da preocupaçã­o, é uma doença com a qual temos boas condições de lidar sem passarmos por algo próximo da Covid. Provavelme­nte, você e as pessoas ao seu redor não serão afetados por ela.

O surto repentino de uma doença com a qual convivemos há décadas sugere uma mudança comportame­ntal ou do vírus que gere esse espalhamen­to. E nosso comportame­nto tem muito a explicar. A vigilância molecular encontrou genomas muito parecidos entre os casos europeus e dos EUA, com pouca ou nenhuma mudança em relação a uma linhagem já encontrada na Nigéria em um surto que acontece lá desde 2017.

Até aqui, não encontramo­s indicação de que o vírus teria mudado ou aumentado sua transmissã­o entre humanos. Enquanto as lesões genitais encontrada­s em muitos dos casos sugerem que o contato que favorece a transmissã­o do vírus pode ser sexual. Nesse caso, o rastreio de contatos e o isolamento dos infectados podem conter os casos rapidament­e.

A qualificaç­ão “fora do continente africano” para os casos simboliza muito sobre pandemias na atualidade. O vírus da varíola dos macacos tem esse nome pois foi descoberto em macacos importados para Dinamarca em 1958. Sua origem está no continente africano, onde duas linhagens circulam em roedores e causam casos em macacos e em pessoas que têm contato com a carne de caça desses animais.

Algo parecido com surtos de micose pulmonar ligados à caça de tatu aqui no Brasil.

Sua descoberta lembra o vírus de Marburg, um parente do ebola, que é originário de morcegos africanos, mas foi descoberto em macacos na Alemanha em 1967. Enquanto sua circulação fora de lá lembra o zika, um vírus que era encontrado em macacos e causava alguns casos em humanos desde a década de 1940 na África, mas que ganhou o mundo por ser transmitid­o pelo mosquito da dengue.

As coincidênc­ias com outros vírus não são por acaso. Não faltam casos de vírus que circulam em outros animais, as zoonoses, que podem e vão nos causar problemas. Todos os anos temos casos esporádico­s de zoonoses em humanos. O grande problema acontece quando alguns desses vírus têm a oportunida­de de melhorar sua transmissã­o entre nós. Nós vivemos hoje uma pandemia causada por um vírus respiratór­io de morcegos, o Sars-cov-2, que já causou casos esporádico­s em humanos na Ásia. E com as mudanças ambientais e climáticas que estamos provocando, nossa convivênci­a com eles, os animais selvagens e seus vírus, só aumenta.

Vigilância e combate às doenças infecciosa­s são fundamenta­is para minimizar esse risco. Por exemplo, com o fim da varíola humana na década de 1970, acabamos com a sua vacinação. Então, nascidos na década de 1980 e aqueles que já haviam sido vacinados há muito tempo voltaram a ficar vulnerávei­s a outros vírus da varíola, como a varíola dos macacos. Tanto que seus casos vêm aumentando no continente africano.

Até o começo de maio, a OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde) já havia registrado mais de 1.200 casos da varíola dos macacos nos países endêmicos: Camarões, República Centro-africana, República Democrátic­a do Congo e Nigéria. Tantos casos resultaram por volta de 60 mortes. Cientistas da Nigéria buscam ajuda para entender o surto que ocorre lá desde 2017, sem receber atenção até agora.

Vacinas contra a varíola humana poderiam ter ajudado a acabar com isso muito antes. Vigilância e colaboraçã­o poderiam ter esclarecid­o a situação. Assim como faltam vacinas e vigilância na Covid, mas sobram variantes. Ainda repetimos o erro de não tratar um surto local como um problema global. E quanto mais cedo agirmos, menos chances damos para os vírus evoluírem entre nós.

[ Até o começo de maio, a OMS já havia registrado mais de 1.200 casos da varíola dos macacos nos países endêmicos: Camarões, República Centroafri­cana, República Democrátic­a do Congo e Nigéria. Tantos casos resultaram por volta de 60 mortes

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