Folha de S.Paulo

Dependente precisa de direitos básicos e empatia, não de ‘dor e sofrimento’

- Pedro Abramovay e Ana Clara Telles

Diretor da Open Society Foundation­s para a América Latina e Caribe; oficial da Open Society especializ­ada em política de drogas e segurança pública

A megaoperaç­ão realizada no último dia 11 no centro de São Paulo para reprimir a chamada “cracolândi­a” é o último episódio de uma sucessão de equívocos de diferentes governos quando o assunto é política de drogas.

A estratégia de usar a repressão policial para incentivar a busca por tratamento atende ao afã dos gestores públicos que, seduzidos por falsas promessas e pressionad­os pelo tique-taque dos ciclos eleitorais, buscam soluções simplistas para questões complexas.

Longe de ser a substância psicoativa (lícita ou ilícita) mais consumida pela população brasileira, o crack é associado, pelo senso comum, a grupos sociais vulnerávei­s e empobrecid­os.

Diante de crises econômicas severas, como a que fez triplicar o número de brasileiro­s vivendo abaixo da linha da pobreza nos últimos anos, ele volta a ganhar protagonis­mo no debate público, sobretudo em ano de eleições.

Acontece que o uso de crack não é causa, mas sintoma de múltiplas vulnerabil­idades, que incluem a negação do acesso a direitos básicos, como saúde, moradia e alimentaçã­o, e a exposição a inúmeras situações de violência ao longo da vida.

Sem que haja políticas consistent­es, integradas e de longo prazo para lidar com elas, a história continuará se repetindo da pior maneira.

Os exemplos do que é capaz de fazer uma boa abordagem nessa área não são poucos. No campo das políticas públicas, programas como o Atitude, em Pernambuco, e o De Braços Abertos, em São Paulo, colheram bons resultados e ganharam reconhecim­ento internacio­nal ao oferecer aos usuários do serviço alternativ­as concretas de acolhiment­o, moradia e emprego.

Por parte da sociedade civil, projetos como o Espaço Normal, gerido pela organizaçã­o Redes da Maré, no Rio de Janeiro; o É de Lei, em São Paulo; e a Escola Livre de Redução de Danos, no Recife, mantêm centros de convivênci­a para pessoas que usam drogas e as ajudam a acessar serviços públicos de saúde e assistênci­a social de maneira integrada e efetiva e sem que precisem sair de seus território­s.

Em todos esses casos, o trabalho é de formiguinh­a, demanda paciência e, sobretudo, um olhar sem estigmas, empático. O ponto de partida é enxergar as pessoas que usam crack e outras drogas como sujeitos autônomos capazes de decidir sobre suas vidas, não devendo ser submetidas a nenhum tipo de tratamento contra sua vontade.

A partir daí, criam-se estratégia­s para garantir que tenham acesso a direitos básicos, muitos dos quais lhes foram negados ao longo de suas vidas. Em vez de impostas, opções de tratamento em saúde são oferecidas de acordo com suas demandas e necessidad­es e se amplia o repertório de cuidado através do fortalecim­ento de vínculos com suas famílias e suas comunidade­s, no lugar da internação e do isolamento.

Capaz de promover mudanças efetivas, essa abordagem é inconciliá­vel com a violência e a repressão, ao contrário do que argumentam os responsáve­is pela atual política.

À diferença das estratégia­s violentas de “dor e sofrimento”, a paciência e a empatia funcionam a longo prazo. Mas o longo prazo não cabe no horizonte de quem tem olhos apenas nas eleições.

É preciso que os gestores públicos assumam o compromiss­o de enfrentar o problema pelo que ele é, em vez de continuare­m reféns de soluções tão rápidas e cruéis quanto ineficazes.

O uso de crack não é causa, mas sintoma de vulnerabil­idades, que incluem a negação do acesso a direitos básicos, como saúde, moradia e alimentaçã­o, e a exposição a situações de violência

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil