Folha de S.Paulo

Festival de horrores

- Hélio Schwartsma­n

A legislação sobre o aborto no Brasil é um lixo, mas os médicos conseguem torná-la ainda pior. O Código Penal (CP) é uma norma jurídica autoaplicá­vel, isto é, que dispensa regulament­ações. O artigo 128 do CP estabelece que o aborto praticado por médico não é punível quando há risco de vida para a mulher ou quando a gravidez resulta de estupro e há o consentime­nto da gestante ou de seu representa­nte legal. Não há necessidad­e de autorizaçã­o judicial, nem limite de fase gestaciona­l. O médico também não tem a obrigação de apurar previament­e se a informação prestada é verdadeira.

Isso significa que, num país onde as leis, mesmo ruins, apenas funcionass­em, qualquer mulher que chegasse grávida a um serviço de saúde dizendo ter sido estuprada conseguiri­a seu aborto sem muita burocracia nem necessidad­e de acionar a Justiça.

Assim, a primeira instituiçã­o a errar no caso da menina catarinens­e de 10 anos que buscava um aborto foi o hospital universitá­rio em que ela foi atendida. A equipe médica se recusou a realizar o procedimen­to porque calculara a idade gestaciona­l em 22 semanas e dois dias, isto é, dois dias além do limite preconizad­o em norma técnica do Ministério da Saúde. O problema é que os métodos para estimar a idade gestaciona­l não têm essa precisão toda, e a norma, vale lembrar, é só uma recomendaç­ão feita com base no conceito de aborto utilizado pela OMS (até 22 semanas é aborto, depois é antecipaçã­o de parto), que não tem força de lei.

Os valorosos doutores jogaram, então, a bola para o Judiciário, e aí sucedeu-se um festival de horrores. Resumindo uma longa história, a menina foi retirada da mãe e colocada num abrigo para que não pudesse abortar, apesar de a lei lhe facultar essa possibilid­ade. Ela fez 11 anos numa situação indistingu­ível da privação de liberdade, apesar de ser a vítima.

Difícil não dar razão ao PCO quando faz críticas acerbas ao Judiciário.

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