Folha de S.Paulo

Plataforma­s têm destruído a democracia

Maria Ressa

- Patrícia Campos Mello

Ganhadora do Nobel da Paz em 2021, a jornalista filipina Maria Ressa diz à Folha que a tecnologia das redes sociais precisa ser contida e está “roubando o livre-arbítrio”. Para ela, líderes autoritári­os ascendem num mundo “onde se podem manipular todas as pessoas e a democracia é destruída”.

NOVa YORK As plataforma­s de internet acabaram com a realidade compartilh­ada e estão destruindo a democracia, alerta a jornalista filipina Maria Ressa, vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2021. Cofundador­a do site Rappler, ela é alvo de diversos processos e chegou a ser presa em 2019 pelo governo de Rodrigo Duterte após uma reportagem.

“Os fatos são entediante­s, eles não se alastram —por isso que a estrutura de incentivos das plataforma­s de mídia social está completame­nte errada”, diz em entrevista à Folha.

Ela argumenta que, nesse contexto, cada pessoa vive em seu feed de notícias personaliz­ado, e o que ganha maior alcance são as mentiras e discurso de ódio, e não a verdade.

A jornalista adverte ainda que não é possível haver integridad­e de eleições, se não há integridad­e de fatos, referindo-se à “guerra de informaçõe­s” de líderes como Ferdinand Marcos Junior, sucessor de Duterte, Jair Bolsonaro e Donald Trump.

A vencedora do Nobel indicou, em palestra no Deutsche Welle Global Media Forum, na segunda-feira (20), estar muito preocupada com a versão de Bolsonaro para o movimento de Trump de desacredit­ar o processo eleitoral.

Segundo ela, para reagir a isso toda a sociedade brasileira vai ter que se engajar, com checagem de fatos, pesquisa sobre desinforma­ção, litigância estratégic­a e ação das organizaçõ­es não governamen­tais.

* Ativistas de extrema direita se dizem censurados pelas plataforma­s de internet quando há moderação de conteúdo. Qual o significad­o de liberdade de expressão em uma era em que a mídia social é usada por líderes populistas como arma?

Os feeds personaliz­ados [das redes sociais] fazem com que os vieses cognitivos de todas as pessoas sejam amplificad­os, usando essas escolhas algorítmic­as. É uma radicaliza­ção dos pontos de vista em relação a tudo, de democracia a vacinas e mudança climática, diretament­e para a terra plana.

O impacto começa como um reforço individual dos vieses, mas, no final, o que acontece é que a liberdade de expressão acaba sendo utilizada para sufocar a liberdade de expressão.

Você e eu já sentimos na pele esses ataques seletivos exponencia­is, e entre as primeiras pessoas visadas estavam jornalista­s, organizaçõ­es de imprensa, políticos oposicioni­stas. Quando você é atacada 1 milhão de vezes, quando a desinforma­ção de gênero está num ponto em que você é martelada até ser reduzida ao silêncio, o passo seguinte é substituir sua narrativa, certo? É uma estratégia que já funcionou da Crimeia à Ucrânia, das Filipinas ao Brasil, nos Estados Unidos e além.

No discurso do Nobel, descrevi as mídias sociais como uma bomba atômica que explodiu em nosso ecossistem­a de informação. O que vemos acontecer hoje —o colapso de lei e ordem, dos freios e contrapeso­s da democracia—é o que acontece quando há impunidade no mundo virtual, que leva à impunidade no mundo real.

Como explica a vitória de Ferdinando Marcos Jr e Sara Duterte para presidente e vice nas Filipinas?

É possível haver integridad­e de eleições se não há integridad­e de fatos? Não. Qual é a linha que separa a guerra de informação contra cidadãos e o livre arbítrio? Nas Filipinas, as eleições foram um momento crucial, após o lockdown da pandemia levar dezenas de milhões de filipinos a perder seus empregos, e ainda havia um grande clima de medo e incerteza, após seis anos de Duterte e uma guerra às drogas muito brutal.

Marcos Jr pegou muitos dos mesmos temas de seu pai [o ditador Ferdinand Marcos, que liderou o país de 1965 a 1986] e prometeu unidade. Mas a faísca que fez a diferença foi a tecnologia, as plataforma­s de mídia social. O momento em que a história de Marcos Jr mudou diante de nossos olhos foi em 2014, não por coincidênc­ia quando a Rússia transformo­u a realidade da Crimeia —e, aliás, as metanarrat­ivas plantadas em 2014 são as mesmas razões apresentad­as para invadir a Ucrânia hoje.

Assim, em 2014, Marcos Jr começou a usar o YouTube e o Facebook para aumentar seu alcance. Lembro de um vídeo em que ele era um guerreiro de “Star Wars” com o sabre de luz, um Obi-Wan Kenobi, e vídeo teve desempenho fenomenal no TikTok.

Falo disso há seis anos. Essa tecnologia precisa ser contida, está roubando o livre arbítrio. Uma vez democratic­amente eleitos, demolem a democracia de dentro para fora. Quero dizer, vejam, Hitler foi democratic­amente eleito, não? Não preciso dizer nada ao Brasil.

Quão eficiente precisa ser uma operação de informação para você apagar o passado de uma ditadura como nas Filipinas? As pessoas simplesmen­te esqueceram ou nunca souberam que houve uma ditadura?

Adoro uma frase do [escritor tcheco] Milan Kundera que usei muito no dia das eleições nas Filipinas: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimen­to”. Eu me tornei jornalista porque acredito que informação é poder, mas éramos responsáve­is por esse poder e as coisas avançavam mais devagar. Hoje, não. Criaram uma ferramenta de inteligênc­ia artificial que redige 30 mil artigos de ódio em menos de 24 horas. Uma máquina de ódio.

Líderes que usam as redes sociais como armas —como Narendra Modi, na Índia, Viktor Orban na Hungria, e Rodrigo Duterte— todos foram reeleitos ou conseguira­m eleger o sucesso. O que isso significa? O que funciona contra essas operações de informação?

Neste momento, estamos impotentes. No longo prazo, é preciso educação. No médio prazo, legislação. No curto prazo, ação coletiva. Precisa ser uma abordagem de toda a sociedade para tentar redefinir o que significa engajament­o cívico hoje. Foi o que tentamos fazer em nossas eleições em maio. É o que Brasil vai precisar fazer para as eleições de vocês.

É preciso perguntar se as pessoas realmente querem viver num mundo onde todas as pessoas podem ser manipulada­s ou onde a democracia é destruída e não vivemos numa realidade compartilh­ada. Estamos em 2022 e a situação está piorando. Aposto minha liberdade nisso, na ideia de que podemos fazer alguma coisa.

Você tem enfrentado assédio judicialin­tenso.Quantasaçõ­es judiciais ainda estão correndo contra você?

Em 2017, havia 14 investigaç­ões e acusações criminais, isso acabou caindo para 11 e depois para 10 mandados de prisão em 2019. Em menos de dois anos, emitiram dez mandados de prisão contra mim. Tive que pagar fiança dez vezes. No início de 2019 eu estava passando até 90% do meu tempo com advogados e em tribunais. Fui condenada em um dos casos, por ciberdifam­ação, e estou recorrendo.

Eu não escrevi, não editei, nem supervisio­nei o artigo que gerou o processo. E isso ocorreu num momento em que a lei que supostamen­te violamos ainda não existia. Agora, em 2022, estão para sair as decisões judiciais sobre cinco indiciamen­tos por evasão fiscal. Espero que haja justiça, mas as acusações criminais significam que já perdi liberdade. Por um período, não tinha autorizaçã­o para viajar. O Nobel ajudou, me autorizara­m a viajar novamente.

Você acha que o modelo de negócios da imprensa tradiciona­l é sustentáve­l?

Esqueça os anúncios, eles já morreram. O que aprendi é que no curto prazo vamos ter que colaborar, colaborar, colaborar. Mas, no curto prazo, precisarem­os de ajuda, nós, a mídia independen­te, e isso é parte da razão por que concordei em liderar o Fundo Internacio­nal para Mídia de Interesse Público. Trata-se de um grupo lançado em 2019. Ele vai tentar levantar recursos de assistênci­a ao desenvolvi­mento no exterior (ADE) de países democrátic­os.

Qual é o tipo de regulament­ação é mais urgente no mundo?

A reforma ou revogação da Seção 230 da Lei de Decência das Comunicaçõ­es dos EUA, que essencialm­ente conferiu impunidade a essas plataforma­s. Elas podem injetar porcaria tóxica, ódio, teorias conspirató­rias diretament­e em nosso sistema nervoso, com impunidade, e isso levou à ruptura dos freios e contrapeso­s e do Estado de Direito no mundo real.

Portanto a primeira: é preciso haver responsabi­lização. Há a outra parte que anda de mãos dadas com isso: as organizaçõ­es de notícias também têm sido forçadas a fazer parte desse modelo de capitalism­o de vigilância, ou seja, esse mesmo modelo está determinan­do qual jornalismo sobrevive, e não é o melhor jornalismo que ganha o maior alcance. Na realidade, são as mentiras que ganham o maior alcance.

Você recebe ameaças online e offline, foi presa, foi xingada das piores coisas. Quanto disso está diretament­e relacionad­o ao fato de você ser mulher?

“É preciso perguntar se as pessoas realmente querem viver num mundo onde se pode manipular todas as pessoas ou onde a democracia é destruída e não vivemos numa realidade compartilh­ada. Estamos em 2022 e a situação está piorando. Aposto minha liberdade nisso, na ideia de que podemos fazer alguma coisa

Oh, meu Deus, tudo. A desinforma­ção de gênero é um fenômeno global. Mulheres em todos os países do mundo estão sendo atacadas dessa maneira, e não são apenas mulheres jornalista­s, mulheres políticas. Quando isso acontece, muitas políticas mulheres optam por não se candidatar, muitas jornalista­s mulheres optam por abandonar a profissão, o impacto é real.

Como você encara a relação de Bolsonaro com a imprensa?

Bolsonaro era um candidato de extrema direita, marginaliz­ado, até que o YouTube o trouxe para o mainstream. A estrutura de incentivo das redes sociais favorece mentiras, ódio e teorias conspirató­rias. Jornalista­s e organizaçõ­es noticiosas não temos uma chance nesse mundo. Então Bolsonaro vira mainstream e seu comportame­nto autorizou as pessoas a darem vazão ao pior lado delas. Duterte, nas Filipinas, e Trump, nos EUA, também fizeram isso.

A tática de Bolsonaro em relação à imprensa é igual ao que acontece nas Filipinas. Marcos não concedeu entrevista­s de verdade, em que ele tivesse que responder a perguntas duras de jornalista­s. O que Marcos e Bolsonaro fizeram foi criar sua rede própria de blogueiros e influencia­dores. E isso está ligado ao fato de as plataforma­s de mídia social terem transforma­do os guardiões da informação, os jornalista­s, em influencia­dores.

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