Folha de S.Paulo

A internet é um agrupament­o de ‘panelinhas’, diz Frédéric Martel

Sociólogo que está no Fronteiras do Pensamento diz que a globalizaç­ão não destrói relações com o território

- Reinaldo José Lopes

SÃO CARLOS (SP) O sociólogo francês Frédéric Martel, de 54 anos, costuma fugir das perspectiv­as que enxergam de forma apocalípti­ca o mundo das redes sociais.

Autor de dois livros sobre o assunto já publicados no Brasil, com os nomes “Mainstream”, lançado há dez anos, e “Smart”, de 2015, o professor da Universida­de das Artes de Zurique pode ser definido como um defensor das “bolhas” —no bom sentido.

“Existe a ideia de que não há mais fronteiras, de que agora todos participam­os de uma única conversa global. A conclusão dos meus livros é que isso não é verdade”, afirmou Martel, em entrevista. “As fronteiras ainda existem. A língua que você fala ainda é importante. É por isso que defendo a ideia de que a internet é geolocaliz­ada, está fragmentad­a de acordo com uma série de espaços culturais distintos.”

O pesquisado­r é um dos convidados deste ano do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, com apresentaç­ões marcadas para os dias 29 e 31 de agosto — em São Paulo e Porto Alegre, nesta ordem—, e uma terceira fala para o público online marcada para 9 de setembro.

As obras de Martel adotam um formato que mistura pesquisa de campo e investigaç­ão jornalísti­ca, com visitas a dezenas de países e entrevista­s com centenas de pessoas para tentar montar um mapa global de como as pessoas estão produzindo e consumindo conteúdo. Ele conta que seu interesse pelo tema está ligado aos paradoxos do ambiente cultural de sua infância e juventude.

“Eu cresci numa cidadezinh­a do sul da França, num ambiente que era muito rural. E, claro, francês e branco. Mas a música que as pessoas ouviam era a música negra americana —o jazz—, e elas liam ‘As Vinhas da Ira’, de um escritor americano, John Steinbeck”, conta. “Meu desejo era entender o porquê disso, o que significa o local e o global e como se conectam.”

Para resumir, ele usa uma analogia gastronômi­ca. “Imagine que você quer comer comida japonesa. É lógico que você poderia fazer isso indo até o Japão, mas hoje existem excelentes restaurant­es japoneses em São Paulo ou em Paris. Importa que eles estejam disponívei­s localmente para nós”, afirma.

“É isso que algumas pessoas antiglobal­ização não entendem —a globalizaç­ão não é capaz de destruir a nossa relação com o território.”

Segundo Martel, a internet lembra mais um grande conjunto de “panelinhas” separadas por línguas e culturas, embora os membros de cada “panelinha” troquem informaçõe­s, memes e ideias.

O paradoxo é que o meio que permite esse intercâmbi­o entre os subgrupos seja uma espécie de “supracultu­ra”, um dialeto cultural que boa parte do mundo usa como segunda língua —algo derivado da cultura americana de língua inglesa.

“É o que eu digo no meu livro ‘Mainstream’. Chego mesmo a dizer que, na Europa, cada país tem duas culturas —não são três culturas porque, nos quase 30 países da União Europeia, não dá para falar de uma cultura europeia geral para todos”, ele argumenta. “Temos sempre uma cultura local muito forte e, junto com ela, uma cultura americana.”

E isso não necessaria­mente é ruim, diz Martel. “Os anticapita­listas vivem dizendo que isso acontece por causa da força do dinheiro americano. Mas os chineses investem bilhões na indústria cinematogr­áfica deles e ainda assim não conseguem fazer um blockbuste­r. Tem a ver com a maneira como você conta uma história. E tem a ver com liberdade.”

Por mais que a exportação desse modelo possa ser vista como uma forma de imperialis­mo, não é incomum que ele seja transforma­do em símbolo de liberdade de pensamento e comportame­nto por minorias.

“Eu costumava ficar surpreso ao ver como meus amigos franceses de origem africana ou árabe abraçavam o rap e o hip-hop, mas a explicação é que eles enxergam liberdade nesses movimentos”, afirma o sociólogo.

Esse potencial explica, em parte, o porquê de a indústria do entretenim­ento e as mídias sociais terem abraçado a diversidad­e étnica e de gênero. Segundo Martel, isso reflete uma transição dentro da sociedade americana, com repercussõ­es globais.

“Antes você tinha a ideologia do ‘melting pot’ [algo como caldeirão], na qual as pessoas podiam ter origens diferentes, mas sua identidade se misturava em algo único. Hoje, você pode ser brasileiro, se tornar americano, mas continuar mantendo uma identidade brasileira dentro dos Estados Unidos.”

Martel se considera otimista em relação ao futuro da internet. Para ele, o lado positivo das interações online ainda supera o negativo. Segundo o pesquisado­r, o caminho para superar o potencial destrutivo das redes sociais não depende da regulação de conteúdo, mas doqueelech­amadeuma“territoria­lização da internet”.

“As plataforma­s precisam agir de forma muito mais responsáve­l de forma local, dentro de cada país, em vez de ficarem encastelad­as no Vale do Silício. Se querem ter operações de marketing em Paris, também têm de assumir a responsabi­lidade pelo que acontece entre seus usuários de Paris”, ele afirma.

“O segundo ponto é que as redes sociais precisam estar acompanhad­as do nome verdadeiro de quem as usa. Quando as pessoas tuítam sem seus nomes reais, tendem a ser muito mesquinhas e atacar mais os outros usuários. E é algo que teria um impacto direto no uso de contas-robôs para fins políticos.”

Fronteiras do Pensamento Tecnologia­s para a Vida Teatro Claro - r. Olimpíadas, 360, São Paulo; Casa da Ospa - av. Borges de Medeiros, 1.501, Porto Alegre. De 8 de agosto a 16 de novembro. De R$ 948 (online) a R$ 1.990 (presencial). Assinantes da Folha têm 30% de desconto. Detalhes em fronteiras.com

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