Folha de S.Paulo

Tentando entender Bogotá

Talvez algumas coisas devam permanecer não ditas

- Zeca Camargo Jornalista e apresentad­or, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”. | QUI. Josimar Melo, Zeca Camargo

Imagine a sensação de pisar num chão feito com as armas derretidas usadas por estuprador­es. Não, você não consegue imaginar o que é essa experiênci­a porque, mesmo eu, que estive onde essa caminhada é possível, não consigo descrever isso aqui.

O lugar mais interessan­te que conheci na minha visita recente a Bogotá chama-se Fragmentos Espaço de Arte e Memória.

É um contramonu­mento, uma palavra inventada pela fantástica Doris Salcedo, uma das maiores artistas contemporâ­neas da Colômbia, para pontuar o conflito armado no seu país.

Um período tão trágico da história colombiana não merecia um monumento, argumentou ela. Mas, se não há nada a ser celebrado, tem muita coisa a ser lembrada nesse espaço quase vazio.

Nas ruínas de uma casa antiga, no bairro da Candelária, onde fica o centro histórico de Bogotá com seus excelentes museus, Salcedo ergueu pareces de vidro definindo grandes espaços vazios e corredores.

Nas salas maiores, exposições temporária­s e um espaço para se ver um filme com depoimento­s das vítimas de abusos sexuais do conflito armado.

E são essas mulheres que fizeram os moldes de cada uma das lajotas de metal, fundidas justamente com as armas apreendida­s depois que a paz foi celebrada.

Foram papéis grossos, amassados irregularm­ente por essas vítimas, que imprimiram no metal o desenho do chão em que o visitante pisa.

Nenhum igual ao outro. Assim como a história de cada uma dessas mulheres é diferente uma da outra. E é impossível não pensar nisso visitando Fragmentos.

O diálogo entre as estruturas modernas e o contorno roto da casa antiga têm tudo a ver com os contrastes que vemos pelas ruas de Bogotá e com a própria história da cidade.

Não era a primeira vez que a visitava, e confesso que fui com a expectativ­a de entendê-la melhor.

Neste sentido, saí de lá frustrado. Amei essa viagem: as artes, as comidas, as pessoas. Quero até escrever mais sobre ela um pouco mais para a frente. Mas eu não consegui absorver corretamen­te seus contrastes, suas belezas, seu ritmo.

La Candelária fica no alto de Bogotá e o trânsito até lá é infernal. Entende-se: imagine uma cidade como Ouro Preto recebendo carros no volume de uma megalópole de quase 10 milhões de habitantes.

Poucas pessoas moram ali no centro.

Os prédios antigos, quase sempre no majestoso barroco espanhol, funcionam como restaurant­es, museus (esses, responsáve­is por uma vibrante arquitetur­a contemporâ­nea), lojas de souvenires ou joalherias apertadas, que disputam os dólares do turistas com suas belíssimas esmeraldas colombiana­s.

Ao longo das vias tortuosas que conectam o centro a outras partes da cidade, surgem habitações mais populares, invariavel­mente construída­s em um tijolo vermelho que colore o contorno urbano.

Nas regiões mais baixas, áreas mais nobres com nomes enigmático­s, como Zona G (onde se concentra a boa gastronomi­a) e Zona T (do comércio mais sofisticad­o).

Ali também estão os apartament­os de luxo e boa parte da vida urbana, que é possível aproveitar, com relativa segurança, a pé mesmo. As melhores galerias de arte também estão por ali.

Teimoso, enfrentei o inconvenie­nte do ar de 2.600 metros de altura, nessa busca infrutífer­a pela essência da cidade.

Conversei com pessoas incríveis, dos curadores da ótima feira de arte que acontece em outubro aos novos chefs que estão mudando a cara dos restaurant­es locais.

Mas tudo que consegui juntar foram fragmentos. Que,claro, me conectaram novamente com o espaço de Doris Salcedo.

Talvez algumas coisas devem permanecer não ditas. Apenas sentidas.

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