Folha de S.Paulo

Precisamos debater o direito ao aborto

Diante das tentativas de retrocesso, é necessário, também, garanti-lo

- Fabiola Fanti Doutora em ciências sociais (Unicamp) e pesquisado­ra do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to)

Desde a redemocrat­ização, o tema do aborto costuma vir à tona em períodos eleitorais. Nas eleições deste ano não é diferente. O presidente Jair Bolsonaro (PL) manifestou-se diversas vezes contrariam­ente ao direito ao aborto em qualquer circunstân­cia. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recentemen­te afirmou que o aborto deveria ser tratado como questão de saúde pública, mas, após repercussã­o negativa, declarou-se pessoalmen­te contrário.

No Brasil, o aborto é crime segundo o Código Penal e permitido em apenas três casos: risco de vida da mãe; gravidez resultante de estupro; e anencefali­a do feto, sendo este último fruto de decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012.

Apesar da complexida­de que envolve a questão, o debate eleitoral sobre o aborto se dá, em geral, em termos de argumentos morais ou convicções religiosas. Não há uma discussão aprofundad­a na sociedade sobre a interrupçã­o voluntária da gravidez como um tema de saúde pública. Sua proibição não impede que abortos sejam realizados de forma insegura por mulheres de todos os estratos sociais e que, muitas delas, principalm­ente as mais pobres, tenham sequelas ou morram em razão do procedimen­to. Outro ponto central é a discussão de que o aborto é um direito da mulher à autonomia sobre o seu próprio corpo —ou seja, não ser obrigada a levar adiante uma gestação indesejada. Essas questões ficam ao largo dos debates políticos em períodos eleitorais.

Pesquisa Datafolha divulgada em 3 de junho mostrou que o número de brasileiro­s que acreditam que o aborto deve ser proibido em qualquer caso caiu para 32%, em maio de 2022, ante 41% em outubro de 2018. Os resultados atuais mostram ainda que 39% acreditam que a lei deve se mantida como está. Para 18%, o procedimen­to deveria ser permitido em mais situações e, para 8%, em qualquer situação. A diminuição da parcela da população contrária ao aborto em qualquer situação se soma ao cresciment­o daquela que é favorável ao aborto em algum grau, principalm­ente entre os mais jovens.

Há décadas feministas lutam pelo direito ao aborto no Brasil e buscam discutir a questão na esfera pública. As conquistas relacionad­as ao aborto legal —como a criação de serviços públicos e regras de atendiment­o no Sistema Único de Saúde— foram resultados dessas batalhas. Durante a década de 2010, mulheres se manifestar­am por todo o Brasil pelo direito ao aborto e contra retrocesso­s nesse campo. São exemplos os protestos contra o Estatuto do Nascituro, em 2013; os atos contrários ao projeto de lei 5.069/2013 (conhecidos como “Primavera Feminista”), em 2015; os protestos contra a PEC 181/2015, chamada de “Cavalo de Troia”, em 2016; e as manifestaç­ões de apoio à legalizaçã­o do aborto na Argentina e à ação judicial que busca a descrimina­lização do aborto no STF, quando da realização de audiências públicas, em 2018.

A chamada “Maré Verde”, como se denominou as conquistas recentes pelo direito ao aborto no contexto latino-americano, impulsiona­das pelas lutas feministas, também tem o poder de pressionar a discussão no Brasil. Nos últimos anos, assistimos a uma onda progressis­ta em relação ao tema: a descrimina­lização do aborto pelas Supremas Cortes da Colômbia e do México, em 2022 e 2021, respectiva­mente; a legalizaçã­o do aborto na Argentina, em 2020; e a inclusão do direito ao aborto no projeto de Constituiç­ão do Chile, em 2022.

Se por um lado a discussão do aborto no processo eleitoral costuma ser superficia­l e atravessad­a por argumentos morais, por outro há uma pressão pelo aprofundam­ento do debate e por mudanças vinda das feministas brasileira­s —com destaque para uma nova geração de mulheres— e pela “Maré Verde” na América Latina. Os grupos feministas vêm expandindo as discussões em torno do aborto, ao mesmo tempo em que são o motor de avanços recentes nessa área. É fundamenta­l ampliar o debate eleitoral sobre o tema —ainda mais em um contexto em que há diversas tentativas de retroceder em direitos já conquistad­os— e trazer para a disputa o que as vozes feministas vêm gritando há anos. É necessário não só debater o direito ao aborto, mas garanti-lo.

A chamada “Maré Verde”, como se denominou as conquistas recentes pelo direito ao aborto no contexto latinoamer­icano, impulsiona­das pelas lutas feministas, também tem o poder de pressionar a discussão no Brasil. (...) É fundamenta­l ampliar o debate eleitoral sobre o tema

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