Folha de S.Paulo

Cesare Battisti diz que Evo é traidor e covarde

Ex-terrorista afirma que foi mantido em centro de espionagem na Bolívia, onde o então presidente o entregou para Itália

- Lucas Ferraz

ROMA Na correspond­ência da reportagem com Cesare Battisti, poucos nomes provocaram tanto a sua indignação quanto o de Evo Morales, expresiden­te da Bolívia e outrora um dos líderes da esquerda na América Latina.

“Evo é um traidor e covarde”, afirmou Battisti, em referência ao político que entregou o fugitivo para os italianos.

A fuga do ex-terrorista italiano para a Bolívia se deu após a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, em outubro de 2018.

Nos seus últimos dias de liberdade em Santa Cruz de la Sierra, entre o final daquele ano e o início de 2019, Battisti afirmou ter sido recepciona­do no país por um representa­nte do MAS (Movimento ao Socialismo), partido de Evo Morales.

Ele contou, ainda, ter sido instalado num “alojamento dentro de um centro de monitorame­nto informatiz­ado, montado pelo serviço de inteligênc­ia boliviano para espiar a oposição”.

Aos 67 anos e com poucas chances de aliviar (no curto prazo) a pena de prisão perpétua, Battisti concedeu uma entrevista pela primeira vez desde que voltou à Itália, há três anos e meio. A Folha a publica com exclusivid­ade.

A série de correspond­ências se iniciou em abril de 2021 e continua até os dias atuais.

Ele fala sobre seus últimos momentos no Brasil, a fuga e prisão na Bolívia e o retorno ao território italiano. Houve uma tentativa de entrevistá-lo pessoalmen­te, mas o encontro não foi autorizado pela penitenciá­ria. Esta é a segunda de três reportagen­s sobre a entrevista de Battisti.

Sobre a Bolívia, Battisti disse ter percebido que alguma coisa não ia bem quando houve um desencontr­o entre as autoridade­s locais: o pedido de refúgio tinha sido apresentad­o por ele semanas depois de entrar na Bolívia, mas a resposta que recebeu foi de que o requerimen­to deveria ter sido feito logo no ingresso.

O processo, como temia, não andou. Detido, ele foi entregue a policiais italianos e formalment­e expulso do país.

Battisti disse que integrante­s do PT e de organizaçõ­es sociais como MST (Movimento dos Trabalhado­res Rurais Sem Terra) e Sintusp (Sindicato dos Trabalhado­res da USP) fizeram contato com o presidente boliviano em 2017, quando o governo de Michel Temer dava sinais de que iria reverter o refúgio no Brasil, e que Evo Morales teria garantido proteção a ele.

A informação foi confirmada por Magno de Carvalho, do Sintusp e um dos principais amigos do italiano na sua temporada brasileira. Era de Magno a casa em Cananeia, no litoral sul de São Paulo, onde Battisti passou uma temporada.

O italiano credita a Evo Morales a sua ida para a Bolívia e também o responsabi­liza pelo que chamou de “sequestro”, referindo-se à sua prisão.

Como foi expulso da Bolívia, e não extraditad­o do Brasil, o processo de extradição julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2010 (determinan­do que, se voltasse para a Itália, ficasse no máximo 30 anos preso) perdeu o efeito.

A sua defesa até tentou leválo em consideraç­ão na Itália para reduzir a pena, mas o Judiciário italiano negou.

Trata-se, na visão do preso, de mais uma influência direta de Evo na sua condição.

“Ele poderia ao menos me fazer ser preso, eu iria responder na Justiça e a extradição seria negada por prescrição e delito político. Evo se vendeu sem escrúpulo. Um gesto desprezíve­l de um homem indigno que revelou toda sua obscenidad­e meses depois, ao abandonar o próprio povo aos golpistas para fugir.”

Ele afirma que a alternativ­a à Bolívia era a Nicarágua de Daniel Ortega, país que havia visitado nos anos 1980, no período em que vivia no México. Mas diz ter descartado essa opção por entender que o regime de Ortega transformo­u o país numa ditadura.

A confissão de Battisti (de participaç­ão em crimes que ele sempre negou nos anos de refúgio) provocou efeitos na esquerda brasileira, com muitos dos antigos apoiadores distancian­do-se dele, como fez o ex-presidente Lula.

Ao longo de mais de um ano de correspond­ência, ele contou que muitos amigos, inclusive brasileiro­s, apoiaram ele mesmo sabendo que, no fundo, poderia ser culpado pelos crimes na Itália.

“Sempre professei minha inocência e qualquer um era livre de interpreta­r como melhor acreditava, mas para muitos esses problemas não se colocavam, simplesmen­te defendiam a ideologia da época dos fatos. Fui apoiado por uma pluralidad­e de razões, seja por me declarar inocente, seja porque muitos países não concebiam uma condenação à revelia, seja porque eu dava a ideia de combatente da liberdade.”

O ex-deputado federal Fernando Gabeira, hoje comentaris­ta da Globonews, foi o primeiro contato de Battisti —conta o italiano— no Brasil, em 2004, quando desembarco­u fugindo da França. O afastament­o entre eles ocorreu muito antes de seu retorno à Itália. Battisti diz ter por Gabeira um sentimento semelhante ao que nutre por Lula —o ajudou no início, mas o descartou depois.

“Quando Gabeira foi candidato no Rio em uma coalizão de direita, aconselhar­am ele a me renegar (a mesma história de Lula). Eu lamentava por ele não ter me aconselhad­o bem. Enquanto eu queria me entregar às autoridade­s para pedir refúgio, ele dizia que não era o caso e assim eu fiquei semiclande­stino de 2004 a 2007. Acredito que no passado Gabeira foi um bom político e um amigo, mas ele também foi devorado pelo jogo do poder”, escreveu.

Gabeira diz que a história contada pelo italiano não “coincide com os fatos”. “Battisti já disse que o iludi dizendo que o governo lhe daria asilo fácil. Agora diz que o iludi demovendo-o de se entregar.”

Nas cartas, o italiano utiliza expressões como “bode expiatório” e “vingança de Estado” para referir ao seu caso. E quase sempre fala de si mesmo na terceira pessoa.

“Não reconheço a imagem que pintaram de mim, esse ser não sou eu”, justificou.

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Alberto Pizzoli -14.jan.19/afp Cesare Battisti é escoltado por policiais ao chegar no aeroporto de Roma

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