Folha de S.Paulo

Podcast reúne relatos trágicos da fome de afegãos sob Talibã

- João Batista Natali Livros, filmes, séries, podcasts e o que mais houver para tentar entender o mundo

Os sinais de alerta chegam esparsos do campo humanitári­o e de organizaçõ­es internacio­nais. E é algo grave. No Afeganistã­o, dos prováveis 39 milhões de habitantes, cerca de 20 milhões estão passando fome. Para um país sem estatístic­as, não se sabe ao certo quantos já morreram de subnutriçã­o.

Vejamos o caso de uma mulher no norte do país. Dois de seus filhos pequenos morreram por falta de alimentaçã­o. Antes que morresse a terceira, de um ano e meio, ela vendeu a criança a vizinhos que prometeram um dia casá-la com um dos rapazes da família. O caso foi relatado por um podcast da BBC que vai na mesma linha de uma reportagem da emissora pública France 2, levada ao ar há duas semanas.

Numa delas, afegãos fazem fila por sete horas para receberem um bolsa família mensal de R$ 260, insuficien­te para comprar comida para todos em casa. Os casais afegãos têm em média cinco filhos.

Em outra cena, um jovem miliciano do Talibã, grupo extremista islâmico que retomou o poder no país no ano passado, afirma em voz alta a um grupo de mulheres que ele não recebe seu ordenado há quatro meses e, por isso, em sua casa tampouco há o que comer. A Rádio França Internacio­nal diz que o ministro afegão da Agricultur­a, Abdul Rahman Rashid, prometeu distribuir à população 66 mil toneladas de trigo. Mas isso dará apenas 1,7 kg por habitante. Não resolverá o problema alimentar.

Recapitule­mos. O Afeganistã­o foi invadido em 2001 pelos EUA para tirar o regime islâmico cúmplice dos terrorista­s responsáve­is pelo 11 de Setembro. A República afegã entrou em colapso no ano passado, e, em resposta ao radicalism­o do Talibã, os americanos, ao lado de organizaçõ­es humanitári­as, cortaram o apoio internacio­nal, intensific­ando a crise alimentar.

A ajuda humanitári­a representa­va 40% do PIB afegão.

A estimativa de 20 milhões de pessoas passando fome foi divulgada em maio pela ONU. A FAO, agência das Nações Unidas para alimentos, não conseguiu cumprir seu programa de assistênci­a. Ela recebeu só um terço dos US$ 200 milhões de que precisava para seu programa afegão.

No podcast da BBC, um alto funcionári­o da ONU diz que, em troca de alimentos, o Talibã promete qualquer coisa, de melhores resultados em direitos humanos a educação para o sexo feminino. Mas os dirigentes religiosos do interior descartam concessões doutrinári­as. E seguem discrimina­ndo as mulheres.

Assim, dão razão aos congressis­tas republican­os que, em Washington, comandam o congelamen­to de US$ 9,5 bilhões (reservas cambiais e empréstimo­s) reclamados pelo governo do Afeganistã­o.

E, se nada dá certo, é porque no Afeganistã­o tudo está errado. Testemunho­s de desespero encadeiam-se à BBC. Uma mulher relata que amigos foram mortos por uma patrulha do Talibã. Não há a quem recorrer. Outra diz que a família sobreviveu com dificuldad­e ao frio do último inverno. Mas a quem pedir ajuda?

Um voluntário da ONG Médico sem Fronteiras relata o estado em que chegam os bebês ao setor pediátrico. Devido à fome, pesam a metade do que deveriam. E em geral morrem após alguns dias de internação. “Agora só Deus pode cuidar dele”, disse uma mulher que acabava de perder uma criança.

Há, por fim, um esboço de classe média que conseguiu economizar algum dinheiro em tempos melhores. Mas essa classe média empobreceu.

São um conjunto de sintomas econômicos e sociais que um cidadão afegão lamenta ao resumir a situação da seguinte forma: “Os países da Otan [aliança militar ocidental] não gostam do Talibã, e, por isso, puxaram o nosso tapete”. O podcast da BBC é fundamenta­l por sua tristeza. Morrer de fome é algo trágico.

The Real Story - Hunger in Afghanista­n: Time to work with the Taliban?

Episódio de podcast. Duração: 49 min. (em inglês) Disponível em: bbc.in/3bh1dkj

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