Folha de S.Paulo

Aborto legal

Devemos romper com a tentação de cobranças individuai­s a problemas do Brasil todo

- | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Fernanda Torres, Drauzio Varella | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de li

Em Santa Catarina, no fórum da cidade de Tijucas, uma criança de 11 anos de idade foi exposta a uma aviltante audiência presidida por uma magistrada que negou o seu direito ao aborto legal, posto que a menina engravidou mediante estupro. A gravação do ocorrido, em que diversas falas revoltante­s da juíza foram proferidas, tornou-se de conhecimen­to público a partir de uma reportagem do site The Intercept e do portal Catarinas.

Dirigindo-se à criança, a juíza proferiu uma série de frases de conteúdo moral. Entre as que mais chocaram estão as perguntas que fez para a criança vítima —“você suportaria ficar mais um pouquinho [com a gravidez]?” e também “você acha que o pai do bebê [referindos­e ao estuprador] concordari­a com a entrega para a adoção?”.

Além disso, a criança foi retirada do convívio com a mãe e enviada durante esse período crítico para um abrigo. Um dos argumentos para essa decisão é que a mãe poderia vir a levá-la ao procedimen­to do aborto legal. Até que a decisão fosse revertida, e mãe e filha pudessem ficar juntas novamente, mais de um mês se passou de isolamento da criança. Uma crueldade.

O mais triste é perceber como episódios se repetem no país, pois não há como se esquecer do caso de dois anos atrás no Espírito Santo, em que foi divulgada a identidade de uma menina negra de dez anos engravidad­a por um tio e que buscou o aborto legal. Seu nome foi exposto por uma militante de extrema direita e uma ministra de Estado moveu o aparato público para fazer um inferno em sua vida.

Voltando a Santa Catarina, não demorou, contudo, para pessoas da comunidade jurídica apontarem problemas na interpreta­ção e conduta da julgadora e da representa­nte do Ministério

Público. Foram apontadas violações ao Estatuto da Criança e do Adolescent­e, uma vez que a audiência ocorreu de forma a intimidar uma criança que, por lei, deveria ter uma oitiva especializ­ada.

A retirada da criança do convívio com sua mãe também fere sua dignidade, uma vez que sua mãe é a representa­nte legal que estava a lutar pelo direito garantido em lei à sua filha. Tanto a criança quanto a mãe foram caladas na busca por seus direitos, merecendo toda a solidaried­ade contra o arbítrio perpetrado.

No que se refere ao aborto, ele é um direito em casos específico­s, e a lei não discrimina semanas para tanto. Fora isso, a gravidez de uma criança, por si só, já é de altíssimo risco, pois nessa idade a estrutura biológica não está pronta para suportá-la, sendo necessária a intervençã­o médica independen­temente das semanas de gestação.

O caso revoltou, com razão, diversas pessoas que o acompanhar­am pela mídia.

Contudo, quero problemati­zar os riscos de pessoaliza­rmos a revolta na conduta de uma só magistrada, não vendo isso como um problema estrutural.

Devemos lembrar que, no Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde, 17.316 meninas de 14 anos foram mães em 2021. Ainda, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mais de 60 mil crianças foram estupradas em 2020, dado subnotific­ado por uma série de razões.

Ou seja, meu ponto é: cobrar do Conselho Nacional de Justiça, órgão que deveria ser responsáve­l pela fiscalizaç­ão procedimen­tal de todo o Judiciário, uma punição à juíza é importante e necessário, porém insuficien­te.

Casos que envolvem crianças e adolescent­es são sigilosos, havendo como consequênc­ia uma menor fiscalizaç­ão da sociedade civil quanto aos rumos de demandas dessa natureza.

São dependemos das estruturas internas do próprio Estado para que se faça valer o direito ao aborto legal, sobretudo quando os casos vão ao Judiciário. Logo, o órgão fiscalizad­or do poder deve ser cobrado para que melhore, e muito, na proteção à criança e ao adolescent­e, devendo responder à sociedade algumas questões diante desse caso.

Por exemplo, quantas varas e equipes psicossoci­ais especializ­adas no acolhiment­o de crianças e adolescent­es vítimas de abuso estão em funcioname­nto? Qual a estrutura oferecida a elas? Qual a fiscalizaç­ão acerca das medidas judiciais que tratem de vítima e seus abusadores? Qual é o plano de expansão do atendiment­o especializ­ado às crianças e às mulheres?

Quais são os processos de formação interdisci­plinar de agentes do sistema de Justiça, dos cargos administra­tivos até o gabinete da juíza e do juiz, que são fornecidos? Qual acompanham­ento é feito junto a seus quadros para reciclagem e como têm sido os processos administra­tivos em face de pessoas desqualifi­cadas para o cargo?

Como já afirmei nesta Folha sobre estupros no país, para não ficarmos reféns da gritaria devemos sempre romper à tentação de cobranças individuai­s a problemas do Brasil todo.

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Linoca Souza

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