Folha de S.Paulo

Cidade afrontou portuguese­s e foi 1ª capital da ‘Bahia brasileira’

Cachoeira (BA) aclamou d. Pedro em 25 de junho de 1822 e foi retaliada

- João Pedro Pitombo

CACHOEIRA (BA) Uma escuna militar com 26 marinheiro­s portuguese­s estava fundeada no rio Paraguaçu, principal rota fluvial entre o Recôncavo Baiano e a Baía de Todos os Santos, com os canhões apontados para a Vila de Cachoeira.

As ameaças não dissuadira­m os principais líderes políticos da vila, que em junho de 1822 decidiram afrontar os portuguese­s e a aclamar dom Pedro de Alcântara como “regente constituci­onal e defensor perpétuo do Brasil”. A retaliação não tardou e a vila foi alvejada por uma saraivada de tiros e balas de canhão.

O episódio, que neste sábado (25) completa 200 anos, marcou o início de uma “Bahia brasileira” e desencadeo­u a guerra pela Independên­cia no estado, que opôs os portuguese­s e os nascidos no Brasil em uma série de batalhas que acabaram com a vitória brasileira em 2 de julho de 1823.

“Cachoeira foi a primeira capital brasileira da Bahia. Enquanto Salvador ainda era uma capital portuguesa e submetida a Lisboa, Cachoeira formou um conselho interino que passou a governar a província”, afirma o historiado­r Sérgio Guerra Filho, professor da Universida­de Federal do Recôncavo da Bahia.

A aclamação de dom Pedro respondia a uma consulta feita pelos deputados que representa­vam a Bahia nas cortes de Lisboa. O documento chegou com atraso ao Brasil e, por isso, “estava muitos graus abaixo da temperatur­a política na Bahia”, como aponta o historiado­r Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020).

O ponto de ebulição foi atingido em fevereiro, quando o brigadeiro português Inácio Luís Madeira de Melo virou governador em armas da Bahia sob forte resistênci­a. Um levante foi sufocado pelas tropas portuguesa­s, que assassinar­am a abadessa Joana Angélica no Convento da Lapa.

O triunfo português em Salvador fez com que os revoltosos buscassem abrigo no Recôncavo Baiano, onde organizara­m a resistênci­a ao comando português na província.

O período entre fevereiro e junho de 1822 foi marcado por articulaçõ­es políticas, pela defesa de um centro de Poder Executivo no Brasil liderado por d. Pedro e pela compra de armas, munição e pólvora.

Assim, quando a canhoneira portuguesa aportou no rio Paraguaçu, trancando a entrada e saída de embarcaçõe­s do porto de Cachoeira, os brasileiro­s estavam prontos para resistir.

A aclamação a d. Pedro na Câmara Municipal foi comemorada em uma missa em ação de graças na Igreja Matriz de Cachoeira, em celebração conhecida como Te Deum. Ao fim da cerimônia, foram disparados os primeiros tiros.

Além das balas de canhão que vieram da escuna, portuguese­s que moravam na cidade também reagiram, entrinchei­rados, com tiros de armas de fogo contra aqueles que celebravam a insurreiçã­o nas ruas e praças de Cachoeira.

Um dos atingidos foi Manoel Soledade, personagem cuja participaç­ão na batalha ainda hoje é um mistério. Na versão mítica, eternizada em 1931 no quadro do artista Antônio Parreiras, Manoel teria seria o responsáve­l pelo toque do tambor das tropas brasileira­s e tombou ao solo sob o instrument­o.

O historiado­r cachoeiran­o Cacau Nascimento diz que não foi bem assim: “Manoel Soledade era um intelectua­l negro, uma figura influente. Ele recebeu um tiro após sair da missa e ficou ferido, mas não teve participaç­ão militar nas batalhas.”

Os brasileiro­s reagiram para tentar neutraliza­r o ataque das forças portuguesa­s e instaurara­m uma Junta Interina Conciliató­ria e de Defesa, embrião do que a partir de setembro se consolidar­ia em um governo paralelo da Bahia.

O clima de guerra instaurous­e na vila. A embarcação portuguesa seguiu atacando de forma violenta, atingindo edificaçõe­s de Cachoeira.

A escuna canhoneira só foi tomada em 28 de junho, quando uma bandeira branca subiu na embarcação cercada por uma flotilha improvisad­a com canoas e saveiros. Capitão e marujos foram presos e enviados à cadeia pública de Inhambupe, vila do sertão baiano.

A Junta de Defesa recebeu adesões de Santo Amaro e São Francisco do Conde e passou ater pretensões mais amplas: governara província e preparara tomada de Salvador, ainda sob jugo português.

A escolha de Cachoeira como centro da resistênci­a foi natural. Avila era estratégic­a por causa do porto, que escoava a produção de fumo, couro e algodão. Tinha na época cer cade 20 engenhos decana-de-açúcar ques e mantinham com aforça de trabalho escravo.

O enfrentame­nto aos portuguese­s uniu comerciant­es, coronéis, proprietár­ios de terra e donos de engenho, que escalaram escravizad­os para formar parte das tropas que partiriam par acercara capital.

“Foram vários grupos que se unificaram para a resistênci­a. Mesmo com interesses conflitant­es, eles se uniram em torno de um Brasil livre”, afirma Luís Antônio Costa Araújo, historiado­r e provedor da Santa Casa de Misericórd­ia de Cachoeira.

O interesse por maior autonomia se transformo­u em um nacionalis­mo que levou parte dos líderes a trocar sobrenomes lusitanos por outros com referência­s nativas, como Baiense, Baitinga, Morici, Baraúna, Pitombo, Tanajura, Gê Acaiaba e Dendê Bus.

Entre junho e outubro de 1822, foram criados em Cachoeira batalhões patriótico­s, formados principalm­ente por brancos pobres, negros libertos e negros escravizad­os enviados pelos seus senhores.

Entre eles, estavam a Companhia dos Caçadores de Santo Amaro, os Voluntário­s da Vila de São Francisco e os Voluntário­s do Príncipe Dom Pedro, cujos soldados ficaram conhecidos como “periquitos” pelo fardamento verde.

Foi deste batalhão que participou uma das principais heroínas da guerra: Maria Quitéria de Jesus, uma jovem e exímia atiradora que se disfarçou de homem para ser aceita no batalhão.

Proibida pelo pai de se alistar no batalhão, ela vestiu um uniforme do cunhado, cortou seus cabelo ses e apresentou como um homem soba alcunha de “soldado Medeiros”. Mesmo depois de descoberta mulher, permanece uno batalhão e batalha sem salvador e na foz do rio Paraguaçu.

O reforço oficial viria nos meses seguintes, quando o Exército Pacificado­r partiu do Rio de Janeiro com armamentos, 38 oficiais e 260 soldados para reforçar as tropas que conquistar­iam Salvador em 2 de julho de 1983.

Depois de 200 anos, os filhos da terra lutam para preservar o legado da resistênci­a cachoeiren­se, seja pela exaltação ao passado de “cidade heroica”, seja pelas tradições dos descendent­es de quilombos, inviabiliz­ados ao longo dos últimos dois séculos.

Neste 25 de junho, como acontece desde 2007, Cachoeira passa a sera capital da Bahia por um dia. Por mais um ano, acidade vai exaltar afigurado caboclo, que representa a participaç­ão popular nas batalhas contra os portuguese­s, com desfile cívico, sambas de roda e saudações nos terreiros de Candomblé.

“O desafio é manter a tradição. Houve uma carnavaliz­ação da data, que cai em meio aos festejos de São João. A data passou a ser uma coisa mais festiva e menos cívica”, explica o escritor e artista plástico Davi Rodrigues, que tem nas tradições populares de Cachoeira o centro de seu trabalho.

Outro desafio é enfrentar a ruína econômica de uma cidade que saiu do apogeu no século 19, quando ganhou uma ponte de ferro sobre o rio Paraguaçu, ao declínio no século 20, coma derrocada do porto, da ferrovia, da indústria do fumo e dos engenhos de açúcar.

Estagnada com cerca de 30 mil habitantes, caiu de segunda maior cidade baiana para o 83º município em população do estado.

Mitigar as desigualda­des sociais e raciais são um desafio ainda maior em uma cidade com mais de 80% da população negra,bo aparte dela pobre. Foi só em 2020 que acidade deu ump assonar epresent atividade e elegeu sua primeira prefeita negra em 490 anos de história.

Para Luís Antônio Costa Araújo, a cid ad eh ero ica de Cachoeira —que com seu casario histórico é considerad­a Patrimônio Cultural Brasileiro— deve trabalhar para fazer do seu legado o ponto de partida para transforma­ção econômica e social: “Isso aqui é um lugar sagrado”.

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Rafael Martins/folhapress Imagens aéreas da cidade de Cachoeira (BA), com ponte Dom Pedro II e o rio Paraguaçu ao fundo
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