Folha de S.Paulo

A Constituiç­ão da nova esquerda

Se Chile aprovar proposta em plebiscito, destruirá o governo de Gabriel Boric

- | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Conrado H. Mendes | sex. Reinaldo Azevedo, Angela Alonso, Silvio Almeida | sáb. Demétrio Magnoli Demétrio Magnoli Sociólogo, aut

“O Chile é um Estado social e democrátic­o de Direito. É plurinacio­nal, intercultu­ral, regional e ecológico.” A Constituiç­ão emanada da Constituin­te chilena é um retrato em 3 por 4 da nova esquerda: a coleção completa de suas utopias, doutrinas e dogmas. Se for aprovada em plebiscito, destruirá o governo de esquerda de Gabriel Boric – e qualquer governo que o suceder.

Nos seus infindávei­s 388 artigos, não se contenta em listar os direitos dos humanos, determinan­do até que o Estado promova uma “educação baseada na empatia e respeito pelos animais” (art. 131). Segundo o artigo 18, a “Natureza” torna-se um sujeito de direitos, ao lado dos cidadãos e das nações indígenas –mas, claro, o texto não define quem fala por ela.

A Constituin­te nasceu da onda de protestos sociais de 2019 e 2020. Sob o impulso das ruas, formou-se uma maioria de ativistas de movimentos sociais e partidos de esquerda que não reflete a balança de forças real da sociedade chilena. Nas eleições do ano passado, Boric conseguiu apenas 26% dos votos no turno inicial, e a esquerda obteve 27% dos assentos na Câmara, contra 48% dos partidos de centro-direita e direita. O texto constituci­onal, porém, reflete um país imaginário, habitado exclusivam­ente pela esquerda pós-moderna.

A política identitári­a esparrama-se por todas as esferas. A palavra “gênero” é mencionada 39 vezes. Garante-se a “paridade de gênero” em todos os órgãos da administra­ção estatal, na direção das empresas públicas e, inclusive, nas organizaçõ­es políticas não estatais (artigos 2 e 163). A “paridade de gênero” aplica-se, ainda, a todos os órgãos eleitos de representa­ção popular, o que viola o direito dos cidadãos de escolher livremente seus representa­ntes.

De acordo com o artigo 312, os tribunais “devem resolver com enfoque de gênero”, uma regra subjetiva que ergue o espectro da potencial inconstitu­cionalidad­e sobre qualquer decisão judicial. O mesmo indefinido “enfoque” aplica-se ao “exercício das funções públicas”, o que possibilit­a judicializ­ar os mais corriqueir­os atos administra­tivos.

O Estado de Direito, consagrado no artigo inicial, é relativiza­do pela proclamaçã­o da plurinacio­nalidade. Os povos indígenas são declarados “nações” e ganham direito à “autonomia” e ao “autogovern­o”, o que inclui “instituiçõ­es jurisdicio­nais tradiciona­is” (art. 34). Daí decorre que a proteção geral dos direitos individuai­s, civis e políticos não se estende aos indígenas.

A nova Constituiç­ão ampara-se na crença implícita de que o Chile é um espaço edênico de abundância ilimitada, de cujo céu jorra leite e mel. A seguridade social pública deve proteger integralme­nte as pessoas do nascimento à morte, inclusive nos casos de “redução dos meios de subsistênc­ia” (art. 45). Estabelece-se um direito universal ao trabalho “de livre escolha” e proíbe-se “todas as formas de precarizaç­ão no emprego” (art. 46). O seu elenco de direitos abrange “moradia digna” em “localizaçã­o apropriada”, assegurada por ações estatais (art. 51).

Nem todos os direitos são acolhidos pelo texto constituci­onal. Fica “proibida toda forma de lucro” nas instituiçõ­es de educação básica, média ou superior (artigos 36 e 37). O artigo 51 veta a especulaçã­o imobiliári­a “que ocorra em detrimento do interesse público”, um critério aberto às mais bizarras interpreta­ções das maiorias políticas de turno.

Uma nuvem de incerteza paira sobre o plebiscito da nova Constituiç­ão. Sondagem recente registrou reprovação de 51%, contra aprovação de 34%, Na hipótese de rejeição, o país ficará com a Constituiç­ão herdada da ditadura de Pinochet. Na hipótese oposta, o Chile rumará à ingovernab­ilidade e se inviabiliz­ará o mandato de Boric, um presidente de esquerda que recusa tanto o autoritari­smo quanto o populismo. De um modo ou do outro, a nova esquerda cumprirá sua missão reacionári­a.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil