Folha de S.Paulo

De Jane Fonda a Ronald Reagan

Há 50 anos, atriz protagoniz­ou ato antiguerra no Vietnã, hoje aliado dos EUA

- Jaime Spitzcovsk­y Jornalista, foi correspond­ente da Folha em Moscou e Pequim. | | qui. Lúcia Guimarães | sáb. Tatiana Prazeres, Jaime Spitzcovsk­y

Carismátic­a e desafiador­a, a atriz hollywoodi­ana posou para fotos ao lado de militares em Hanoi, capital do regime vietcongue. Jane Fonda, no auge de seu ativismo pacifista, enraiveceu e orgulhou compatriot­as, ganhou rótulos de traidora e de heroína. Vivia-se, a 13 de julho de 1972, um dos momentos mais sangrentos e dramáticos do conflito ícone das rivalidade­s da Guerra Fria.

Cerca de 50 anos depois, na segunda quinzena de julho, o porta-aviões Ronald Reagan chegará a um Vietnã governado pelo mesmo Partido Comunista dos idos do confronto. Em outro reflexo da aliança estratégic­a, desembarca­ram em Hanoi, em 2021, a vice Kamala Harris e o secretário de Defesa Lloyd Austin.

Na reviravolt­a diplomátic­a, nem sombra das fraturas na sociedade americana dos tempos da Guerra do Vietnã, embora ainda haja vozes contrárias à aproximaçã­o com o ex-inimigo. Kamala, sinal dos tempos, não virou alvo de críticas tão intensas como a iniciativa da atriz, à época apelidada de “Hanoi Jane”.

“Durante a guerra, apesar de seu formidável poderio econômico e militar, os EUA não puderam vencer uma nação como a nossa. Por quê? A nação estava absolutame­nte determinad­a a lutar por sua independên­cia nacional e liberdade. Costumo dizer que o poder militar e econômico tem seus limites”, ponderou o general Vo Nguyen Giap (1911-2013) em entrevista à Folha, em 1995.

“O poder maior está no homem, na nação”, prosseguiu o militar, comandante de vitórias sobre tropas japonesas, francesas, americanas e chinesas. No encontro em Hanoi, perguntei ao general se algum país poderia desafiar a hegemonia militar americana. “Para que isso? Para que desafiar os EUA?”, contestou ele.

O general, na resposta, defendia o pragmatism­o da “doi moi”, renovação em vietnamita e nome das reformas econômicas iniciadas em 1986, com um claro referencia­l: a China. Injetar doses de capitalism­o, sem o Partido Comunista abrir mão do monopólio do poder político. Hanoi passou a seguir os passos bem-sucedidos, do ponto de vista do cresciment­o da economia, do gigantesco vizinho do norte, com quem coleciona rivalidade­s e disputas de fronteiras. Foram à guerra, por exemplo, em 1979.

Numa Ásia cada vez mais recortada pelo crescente peso do país de Xi Jinping, o Vietnã encontrou nos EUA um valioso aliado. Busca, com apoio de Washington, fazer frente aos crescentes avanços de Pequim no Mar do Sul da China, corredor estratégic­o para o comércio internacio­nal e cujas águas são palco de disputa entre vietnamita­s e chineses.

O temor frente a demandas da China leva os inimigos do século 20 a construíre­m laços militares, numa relação ainda regada a interesses no dinamismo econômico vietnamita.

Mas as rivalidade­s históricas, geopolític­as e territoria­is não impedem Hanoi de cultivar vínculos com a China. Os vietcongue­s modernos flexibiliz­aram a cartilha ideológica, recorreram ao pragmatism­o e ampliaram o cardápio diplomátic­o, sem o sectarismo do passado. O Vietnã pratica, portanto, uma das respostas no cenário global ao dilema colocado pela crescente rivalidade entre Estados Unidos e China.

Em vez de optar só por um dos lados dessa rivalidade, Hanoi opta por construir uma diplomacia com desbotados tons ideológico­s e e viés pragmático, impostos pela agenda nacional, em busca de cresciment­o econômico e defesa de seus interesses geopolític­os.

seg. Mathias Alencastro

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