Folha de S.Paulo

Atual Constituiç­ão do Chile amarra democracia em uma camisa de força

Primeira deputada trans do país atribui baixo índice de aprovação da proposta de nova Carta chilena nas pesquisas à desinforma­ção

- Mayara Paixão Emilia Schneider na Virada ODS

Emilia Schneider, 25, pensava ter entrado para um clube que não a queria como sócia. No entanto, a primeira deputada trans do Chile se surpreende­u com os primeiros meses de mandato, nos quais diz ter encontrado um ambiente de respeito no Congresso e na sociedade.

Isso, talvez, seja parte do que ela descreve como uma mudança no Chile, que segue conservado­r, mas vê florescer um progressis­mo que, afirma ela, foi puxado em grande parte pelo movimento estudantil.

Há ainda o ingredient­e histórico. Emilia é bisneta do general René Schneider, assassinad­o em 1970, anos antes do golpe que derrubou o socialista Salvador Allende, por se opor aos intentos antidemocr­áticos das Forças Armadas.

Ela falou com a Folha em um hotel em São Paulo, onde está para participar, neste sábado (9), da Virada ODS, que discute os Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l.

* Como o período da ditadura está relacionad­o à sua geração?

As ditaduras da América Latina não foram casualidad­es, mas uma articulaçã­o para frear processos de transforma­ção. É importante para lembrar os anseios de mudança que existem e para entender que o que a ultradirei­ta nos oferece hoje como saída não passa de uma receita que já conhecemos: autoritari­smo, ultraconse­rvadorismo e negação de direitos.

O presidente Gabriel Boric tem índice de aprovação de 33% segundo pesquisas mais recentes. A que atribui isso?

Tem sido difícil a instalação do governo de transforma­ção, sobretudo porque estamos governando com uma população que vê as instituiçõ­es muito distantes de suas necessidad­es. A nossa sociedade também está muito fragmentad­a. No Congresso, não há maiorias. Se não tomarmos a dianteira para organizar os atores sociais, vai ser muito difícil avançar e combater o mal-estar do povo com a política.

Pesquisas também mostram que mais da metade da população diz rejeitar o texto da nova Constituiç­ão. Acha possível mudar esse número?

Temos que fazer com que o conteúdo chegue até a população sem mentiras. Hoje em dia, a Carta que temos, da época da ditadura, apesar de todas as reformas já feitas, impede que a democracia possa funcionar, porque temos uma camisa de força. A nova Constituiç­ão vai permitir que a democracia se expresse. Os partidos que disseram não à ditadura no final dos anos 1990 hoje estão a favor da nova Carta. E os partidos que votaram para manter a ditadura hoje negam a nova Constituiç­ão. Creio que isso diz muito sobre o que está em jogo.

Há um artigo da proposta que fala sobre o direito à educação sexual. Como seria na prática?

São medidas para que, em todo o nosso ciclo formativo, tenhamos informaçõe­s sobre sexualidad­e, reprodução, corpo e identidade. Isso tem diferentes benefícios, como permitir que meninos e meninas conheçam os limites e os direitos sobre seus corpos, para prevenir abusos infantis e para que não cresçam discrimina­ndo orientaçõe­s sexuais ou identidade­s de gênero distintas, além de prevenir a gravidez na adolescênc­ia.

Há também um artigo para garantir o direito ao aborto. Qual o desafio de aprovar uma matéria do tipo em um país ainda conservado­r?

O Chile tem uma sociedade conservado­ra, mas que tem mudado muito nos últimos anos. Têm havido muitas mentiras da direita e da ultradirei­ta, como que isso permitira um aborto aos nove meses de gestação. Ter uma nova Constituiç­ão vai facilitar essa discussão no Congresso, porque teremos que chegar a um acordo.

A política institucio­nal pode ser violenta com as mulheres e a população LGBTQIA+. Como tem sido a sua experiênci­a?

Tenho me sentido muito bem recebida pela população, e temos uma bancada da comunidade LGBTQIA+, pela primeira vez, com quatro mulheres da comunidade. Mas, sim, tenho me deparado com uma agenda de ódio impulsiona­da pela ultradirei­ta. Mas os trabalhado­res do Congresso são pessoas muito boas.

Quais as principais bandeiras LGBTQIA+ no Chile?

A primeira é como combater os crimes de ódio e garantir segurança às pessoas de diversidad­es sexuais e de gênero nos espaços públicos. Também o acesso a direitos básicos, como saúde, educação e trabalho digno. Outro desafio é como reparamos as gerações LGBTQIA+ mais velhas, que não gozaram dos poucos direitos que a minha tem usufruído e estão abandonada­s.

Qual a importânci­a das eleições do Brasil neste ano para a região?

Uma vitória de [Jair] Bolsonaro seria outro gesto no sentido do avanço conservado­r, que deve ser freado. Ele tem sido uma liderança nociva para a região, quando precisamos ter uma voz unida frente ao mundo e dizer “ok, já basta de abusos”.

Sábado (9), às 17h30. Palco Igualdade de Gênero, no Pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera. Grátis.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil