Folha de S.Paulo

Líder construiu nação independen­te com petróleo e corrupção

- Fábio Zanini

Pouco dias antes de deixar a Presidênci­a de Angola, em setembro de 2017, José Eduardo dos Santos inaugurou um monumento em Cuito Cuanavale, no leste do país.

A estrutura homenageia heróis de uma das mais famosas batalhas da guerra civil, em 1988. Épico, o confronto que colocou frente a frente marxistas no governo e anticomuni­stas com apoio do apartheid sul-africano terminou sem vencedor claro e se tornou espécie de mito fundador da Angola independen­te.

Ao associar-se a evento tão simbólico, o presidente angolano que deixava o cargo após impression­antes 38 anos no poder buscava lustrar suas credenciai­s de pai da nação, como um último ato antes da aposentado­ria forçada.

Dos Santos, morto nesta sexta-feira (8), nunca teve a personalid­ade como trunfo, o que faz dele uma exceção entre os longevos líderes africanos do período pós-descoloniz­ação africana. Neste aspecto, jamais esteve na mesma liga de Robert Mugabe (Zimbábue), Julius Nyerere (Tanzânia) ou Kwame Nkrumah (Gana), para não falar de Nelson Mandela (África do Sul), todos capazes de hipnotizar multidões com sua oratória.

A voz fina, os trejeitos de engenheiro —sua formação acadêmica e como gostava de ser chamado— e o estilo de burocrata soviético eram a antítese do carisma. Pelas costas, opositores ridiculari­zavam-no com a alcunha “Zédu”. Foram essas caracterís­ticas, de um certo modo, que o catapultar­am ao comando do país em 1979, após a morte repentina do primeiro presidente angolano, Agostinho Neto.

Naquele momento, Dos Santos era rara figura de consenso, que não ameaçava nenhuma facção do dominante MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola).

Era visto como um líder de transição, mas sua habilidade em se equilibrar no mosaico étnico e ideológico do país o manteve no poder por quatro décadas, uma façanha mesmo num continente acostumado a longos reinados políticos.

Como presidente, “o engenheiro” administro­u e pilhou os recursos do Estado construind­o uma vasta rede clientelis­ta que sufocou opositores e rivais. A longa guerra civil, resolvida apenas em 2002, de uma certa forma o ajudou, estreitand­o a margem para contestaçõ­es dentro do regime em nome do esforço contra o inimigo liderado pela Unita (União Nacional para a Independên­cia Total de Angola).

Seu regime nunca foi particular­mente sanguinári­o, ao menos se comparado ao que se testemunho­u em outras nações africanas, apesar das purgas eventuais e da repressão a manifestaç­ões de dissenso.

Dos Santos governou mais como um gerente da riqueza natural proporcion­ada pelo petróleo e pelos diamantes.

Seu modus operandi era cooptar instituiçõ­es e soltar o freio na compra de apoio das elites, o que fez de Angola por muito tempo um dos países mais corruptos do mundo.

Na primeira década deste século, o boom do petróleo fez de Angola o país que mais crescia no planeta, com taxas anuais superiores a 20%. A posição do então presidente nunca pareceu mais segura. Grandes obras, muitas das quais tocadas por empreiteir­as brasileira­s, viraram uma marca da nação, movidas a propina e superfatur­amento.

Mas o crash global que se seguiu dez anos depois teve efeito contrário, trazendo recessão, crise cambial, e até um pequeno movimento de contestaçã­o da sociedade civil.

A fórmula mágica que permitiu ao engenheiro tamanha longevidad­e aos poucos esvaiu-se, e as qualidades que o levaram ao poder acabaram se tornando um peso para o regime. Acusações de corrupção envolvendo sua família avolumaram-se, contribuin­do para sua decisão de finalmente sair da cena política.

A promessa de que o novo chefe de Estado, João Lourenço, preservari­a os privilégio­s do clã presidenci­al não se concretizo­u, apesar de nominalmen­te serem aliados. Com instinto de sobrevivên­cia, Lourenço distanciou-se do antigo estadista e deixou correr solta uma Lava Jato angolana.

A decadência física culminou na morte do ex-presidente menos de dois meses antes de uma eleição em que seu legado poderia ser um embaraço para o atual governo, criticado pela crise econômica. De certa forma, foi um último serviço prestado por Dos Santos ao partido que ele comandou durante tanto tempo.

Resta agora a dúvida sobre como a população angolana cultivará a memória do homem que mais contribuiu para a criação da Angola moderna e se a imagem de pai da pátria finalmente colará nele.

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