É mais efetivo testar síndrome rara do que só tratar câncer
Mutação faz com que famílias inteiras tenham tumores, aponta estudo
Em 13 anos, o economista Regis Feitosa Mota, 52, de Fortaleza (CE), e seus três filhos tiveram 11 diagnósticos de câncer associados a uma síndrome hereditária pouco investigada no Brasil.
O drama começou em 2009, quando a filha mais velha, Ana Carolina, à época com 12 anos, foi diagnosticada com leucemia linfoide aguda, câncer mais comum na infância, que tem início na medula óssea. Hoje, Ana é médica e trata de um novo tumor, dessa vez no cérebro.
Em 2016, Mota descobriu uma leucemia linfoide crônica, e em 2021, um linfoma não Hodgkin, um tipo de câncer que tem origem nas células do sistema linfático. Atualmente, ele trata das duas doenças.
Também em 2016, o filho do meio, Pedro, então com 17 anos, teve diagnóstico de um osteosarcoma, tumor ósseo, na perna. Ele viria a ter mais quatro tumores (pulmão, coluna torácica, coluna lombar e no cérebro) até morrer em 2020.
Em 2017, a caçula da família, Beatriz, foi diagnosticada com leucemia linfoide aguda aos 11 anos. Morreu um ano depois. As leucemias têm início na medula óssea, quando os glóbulos brancos passam a se desenvolver em excesso e deixam de realizar sua função correta, que é proteger o organismo contra vírus, bactérias, dentre outros perigos.
“Apesar de todos esses problemas, a vida vale muito a pena ser vivida. É muito complicado a gente conviver com a ausência de filhos, mas tento trabalhar isso dentro de mim, de que todos nós estamos aqui de passagem”, diz o economista, católico, e que tem mais de 18 mil seguidores no Instagram.
A tragédia dos Mota tem uma explicação científica: a família carrega uma mutação no gene TP53 que a predispõe a desenvolver cânceres de forma precoce e frequente.
Um estudo recente do Hospital Sírio-libanês publicado na revista The Lancet Regional Health–americas, mostrou que é mais efetivo para o SUS fazer testes genéticos e exames de rastreamento para identificar quem tem essa mutação do que apenas tratar os tumores que essas pessoas vão ter ao longo da vida.
Chamada de Li-fraumeni (LFS), essa síndrome é rara, mas no Brasil há uma prevalência maior em comparação com o resto do mundo. Os portadores brasileiros da LFS apresentam uma mutação específica (R337H) num trecho de DNA que ajuda naprodução da proteína P53.
Essa proteína, apelidada de “guardiã do genoma”, tem como principal função impedir os erros de cópia do DNA que levam ao surgimento do câncer. Sem ela, o organismo perde uma de suas principais defesas e há mais chances de formação de tumores.
Estudos com mais de 150 mil crianças recém-nascidas no Sul e no Sudeste verificaram que a prevalência nessas regiões é de 0,3% da população, ou seja, cerca de uma a cada 300 pessoas têm a mutação.
Nos outros países, os dados sobre a prevalência da mutação vão de um a cada 5.000 pessoas até uma a cada 20 mil.
O problema é que essa síndrome nem sempre é reconhecida e, por isso, não são adotadas medidas preventivas que poderiam levar à descoberta e tratamento mais precoce. Regis e os filhos, por exemplo, só tiveram o diagnóstico da síndrome em 2016, sete anos depois do primeiro caso de câncer na família.
“Até então, pensávamos que poderia ter sido coincidência a Ana Carolina ter tido em 2009 e eu no início de 2016. Mas com o diagnóstico em seguida do Pedro, começamos a suspeitar de alguma questão genética”, conta Mota. O pai e a mãe do economista já passaram dos 80 anos e nunca tiveram câncer. Os irmãos dele não carregam a mutação.
O estudo comparou dois grupos de portadores da LFS: metade sob estratégias de vigilância com os exames e a outra metade sem esse acompanhamento. Considerando os custos e os ganhos em anos de vida, a estratégia de acompanhamento para detecção precoce do câncer foi 64% mais efetiva para mulheres e 45% para homens, em comparação à estratégia da não vigilância.
“Sai muito mais barato para o governo brasileiro [testar e acompanhar] do que ter que arcar com cirurgias, quimio e radioterapias, além da perda dos anos saudáveis dessas pessoas e das vidas”, diz a geneticista Maria Isabel Achatz, pesquisadora do Sírio-libanês e uma das autoras do estudo.
Os protocolos mundiais para acompanhar a síndrome incluem exames como a ressonância magnética de corpo inteiro, a colonoscopia e a endoscopia a partir dos 25 anos. No Sírio, 420 pessoas com a síndrome estão acompanhadas atualmente.
Segundo a médica, apesar da grande incidência da síndrome, o Brasil não oferece teste genético para investigação da mutação. A ideia é mudar isso. Assim, uma paciente que apresenta câncer de mama aos 30 anos, por exemplo, seria candidata a ser testada para essa mutação específica.
A partir dela, se investigaria a sua família, que pode incluir pais, irmãos, filhos, primos. Cada familiar direto tem 50% de risco de ter herdado a mesma alteração genética.
“
Sai muito mais barato para o governo brasileiro [testar e acompanhar] do que ter que arcar com cirurgias, quimio e radioterapias, além da perda dos anos saudáveis dessas pessoas e das vidas
Maria Isabel Achatz geneticista