Folha de S.Paulo

Gigante e desprestig­iado, torneio no Brasil há 50 anos moldou futebol atual

Mini-copa de 1972 catapultou João Havelange à Fifa e promoveu expansão territoria­l da entidade

- Marcos Guedes

Não são muitos os que se lembram. O título não está entre as grandes conquistas do Brasil. Mas, há 50 anos, em 9 de julho de 1972, 100 mil pessoas foram ao Maracanã ver a equipe verde-amarela derrotar Portugal por 1 a 0, com um gol marcado aos 44 minutos do segundo tempo.

O suado triunfo no Rio, obtido em cabeceio de Jairzinho, valeu o título da Taça Independên­cia. Conhecida como Minicopa, a competição celebrava os 150 anos da emancipaçã­o brasileira —o que tornou emblemátic­a a vitória sobre os portuguese­s na decisão— e estava inserida em um jogo político de múltiplas camadas.

Uma delas era o uso que a ditadura fazia do esporte na construção do “Brasil grande”, em especial no governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), figura frequente no estádio Mario Filho com seu radinho de pilha. No projeto de integração nacional do regime militar, o futebol cumpria papel relevante, e um torneio com 12 sedes e 20 seleções tinha valor simbólico.

As 20 seleções tinham valor mais do que simbólico para João Havelange, então com 56 anos, presidente da CBD (Confederaç­ão Brasileira de Desportos, atual CBF). O tamanho da disputa —a Copa do Mundo de 1970 tivera 16 participan­tes— e a abertura para centros do mundo esportivo que se sentiam pouco representa­dos eram trunfos em sua candidatur­a para assumir a Fifa.

Havelange conseguiri­a de fato, em 1974, vencer a eleição para a presidênci­a da entidade que rege o futebol, com margem apertada sobre o antecessor, o inglês Stanley Rous. Não é exagero dizer que seu triunfo foi obtido com os votos de federações nacionais angariados na Mini-copa.

Toda a organizaçã­o foi feita em clima de campanha. Enquanto o Brasil seguia seu padrão de construir e reconstrui­r estádios, Havelange viaja convidando seleções. Ele até comemorou a presença confirmada de todos os campeões mundiais —além do Brasil, Uruguai, Itália, Alemanha Ocidental e Inglaterra.

Mas o então presidente da Fifa tentava ser reeleito em disputa com Havelange. Assim, as principais federações da Europa, reduto de Rous, foram boicotando o evento, com justificat­ivas pouco convincent­es.

“Minha candidatur­a está incomodand­o muita gente”, disse o presidente da CBD.

No fim, a Itália, a Alemanha Ocidental, a Inglaterra e até a Espanha, anunciada como substituta, não apareceram.

Rous, porém, cumpria seu papel como mandatário da Fifa e dava força, no ambiente interno do Brasil, ao presidente da CBD e a seus aliados. Nas visitas, os aplausos se estendiam ao regime militar.

“Em todos os estados do país, senti que o povo tem em seu estádio um símbolo de orgulho. Isso é ótimo para que a juventude pratique todo tipo de esporte. Estaremos desarmando as más ações, como a subversão”, disse o inglês, advertindo, há cinco décadas, que copas e mini-copas não se fazem com hospitais (ou igrejas).

“Em meu país, por exemplo, há dezenas de anos, quando o povo pensou em construir um grande estádio, construiu uma catedral. Agora, quando quase ninguém mais vai à igreja, pode ser que surjam grandes praças de esportes em lugar das catedrais, pois a população já está preferindo os estádios, como no Brasil.”

As frases estavam no contextodo “milagreeco­nômico”, período em que o Brasil teve taxas recordes de cresciment­o e endividame­nto. Faziam parte desse contexto as grandes obras, como a construção da rodovia Transamazô­nica.

No futebol, isso se concretiza­va em estádios. As 12 sedes da Mini-copa se dividiam em todas as cinco regiões. E o Nordeste —parte importante no plano de integração nacional— viveu uma espécie de “stadium boom”. Às vésperas da Taça Independên­cia, nasceram o Arruda (Recife), o Machadão (Natal), o Rei Pelé (Maceió) e o Batistão (Aracaju). Os novos Vivaldão (Manaus) e Morenão (Campo Grande) também estiveram entre os palcos de um campeonato que teve o governo como sócio.

“A Taça foi mobilizada como uma via de reforço do ideal de ‘Brasil grande’”, diz o pesquisado­r Bruno Duarte Rei, no artigo “Taça Independên­cia (1972): o futebol no Brasil em tempos de ‘milagre’”. “A ditadura militar visava lucrar, notadament­e sob o ponto de vista simbólico, com a ocorrência do torneio”, acrescenta.

A CBD, na figura de Havelange, era parceira do regime. Em ofício enviado à Presidênci­a sobre o certame, a entidade se declarava empenhada em “um trabalho de integração nacional por meio do futebol”. A competição seria, dizia João, “mais um elo para a integração do país”.

Pode-se dizer que os objetivos foram alcançados. O evento esportivo foi esvaziado, desprestig­iado por times importante­s, e teve público fraco na primeira fase, mas os estádios já estavam de pé, e a presença nas arquibanca­das foi aumentando. A seleção brasileira entrou na segunda etapa e contribuiu para o cresciment­o até os cerca de 100 mil espectador­es da decisão.

A equipe nacional já não tinha Pelé, que dela se despediu em 1971, frustrando Havelange pela recusa em jogar a Mini-copa. Mas isso não impediu o dirigente de obter os votos necessário­s para vencer a eleição da Fifa. Empossado em 1974, permaneceu no cargo de presidente até 1998 e imprimiu sua marca.

“Cheguei para vender um produto chamado futebol”, discursou o carioca, sob cujo comando a entidade se tornou uma empresa bilionária e globalizad­a. Morto em 2016, aos cem anos, dizia que recebera o cofre com US$ 20 e o deixara com US$ 4 bilhões.

Nesse movimento, fez a Copa do Mundo saltar de 16 participan­tes para 32. O brasileiro passou a se comportar quase como um chefe de Estado. “Converso com todos os presidente­s, mas eles conversam também com um presidente de igual status. Eles têm o seu poder, e eu tenho o meu: o poder do futebol, que é o maior.”

Como ocorre frequentem­ente no poder, houve escândalos de corrupção, o mais famoso deles ligado à ISL, empresa de marketing da Fifa. Ao sair da presidênci­a, João deixou um sucessor, Joseph Blatter, que seguiu seu modelo de negócio e de expansão territoria­l —em 2010, houve a primeira Copa na África.

Novos escândalos derrubaram o suíço, substituíd­o em 2016 por outro. Agora é Gianni Infantino quem conduz o futebol ao modo Havelange. O Mundial deste ano será no Qatar. O seguinte terá 48 seleções e um regulament­o esdrúxulo para acomodá-las.

Mais ou menos como foi com os 20 times da Mini-copa de 1972. Enquanto cinco aguardavam, os outros 15 foram divididos em três grupos.

Vencedores de suas chaves, Argentina, Portugal e Iugoslávia se juntaram a Brasil, Escócia, Tchecoslov­áquia, União Soviética e Uruguai em dois quadrangul­ares semifinais. Foi assim que brasileiro­s e portuguese­s se encontrara­m naquele 9 de julho.

Na tribuna de honra do Maracanã, Médici entregou o troféu a Gerson, dizendo-lhe: “Vocês acabam de dar uma grande alegria ao Brasil”. “Depois disso”, relatou a Folha, “foi servida uma taça de champanha francesa”. “Médici tomou um gole da taça e passou-a a Havelange”, que foi vender seu produto e fazer do futebol um negócio bilionário.

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Acervo - 17.jun.72/folhapress João Havelange observa a Taça Independên­cia, decisiva para sua ascensão ao comando do futebol mundial
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Acervo - 9.jul.72/folhapress
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Reprodução - 10.jul.72/folhapress Tostão se estica em lance da final no Maracanã; Brasil venceu Portugal por 1 a 0, com gol de cabeça de Jairzinho aos 44 minutos do segundo tempo

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