Folha de S.Paulo

Do Bolsa Família às cotas

- Luiz Augusto Campos Professor de Sociologia do IESP-UERJ e coordenado­r do Grupo de Estudos Multidisci­plinares da Ação Afirmativa

Apesar de terem a paternidad­e disputada, o Bolsa Família e as cotas no ensino superior foram as mais originais políticas encampadas pelos governos petistas. Embora distintos, ambos os programas têm uma premissa comum: para reduzir desigualda­des, é preciso considerar a existência e complexida­de das discrimina­ções.

Num mundo de desigualda­des complexas, políticas redistribu­tivas não podem simplesmen­te tirar dos ricos e dar para os pobres. Isso porque outras assimetria­s atravessam a pirâmide social. Mesmo dentro de uma mesma classe social, negros têm menos chances de melhorar de vida do que brancos, mulheres ganham comparativ­amente menos que homens, e crianças são infinitame­nte mais vulnerávei­s do que adultos.

Louvada como política eficaz na redução da pobreza, o sucesso do Bolsa Família reside no modo complexo como ele manejou conjuntame­nte diferenças de classe, gênero e geração. Em seu desenho original, são as mães de família mais pobres as titulares prioritári­as do benefício. As condiciona­lidades, por seu turno, recaíam sobre as crianças, que deviam ter certa assiduidad­e escolar e estarem em dia com as vacinas. Embora esse desenho possa ser criticado, precisamos reconhecer que ele multiplico­u o impacto de cada real investido no programa.

Ainda que as cotas raciais tenham sido objeto privilegia­do de polêmica, fato é que o governo federal adotou em 2012 um programa de cotas com recorte econômico, que privilegio­u estudantes de escola pública e baixa renda. Só depois da aplicação dessas cotas é que incidem subcotas raciais, ainda assim com percentuai­s totais bem menores que a representa­tividade de negros na população. Ao termo, a política de cotas ajudou a quase duplicar o percentual de negros e pobres nas universida­des federais, tudo isso sem perda de qualidade no ensino e a custo próximo de zero.

O fato de essas medidas combinarem clivagens de raça, gênero, classe e/ou geração não nos autoriza a rotulá-las como “políticas identitári­as”. Ao contrário, o Bolsa Família e as cotas são políticas que utilizam as diferenças entre grupos discrimina­dos justamente para produzir mais igualdade de acesso a recursos e oportunida­des. O sucesso do Bolsa Família é que os filhos das beneficiár­ias dispensem o auxílio, do mesmo modo que o sucesso das cotas é que os filhos dos beneficiár­ios prescindam da reserva. Sem prejuízo de outros desenhos institucio­nais, é esse modelo de política pública —universali­sta nos fins e focal nos meios— que explica parte do sucesso do PT no passado e que, portanto, deve ser retomado e potenciali­zado nesse novo ciclo.

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