Folha de S.Paulo

No alvo dos acontecime­ntos

Foto de Lula atrás de vidraça quebrada choca por evidenciar intenção golpista

- Edilamar Galvão Mestre e doutora em comunicaçã­o e semiótica (PUC-SP), é coordenado­ra do curso de jornalismo da Faap

“O fotógrafo caça, a fim de descobrir visões até então jamais percebidas. E quer descobri-las no interior do aparelho.” (Vilém Flusser)

A foto de Lula arrumando a gravata por trás de um vidro estilhaçad­o, estampada na Primeira Página da Folha na quinta-feira (12), chocou leitores e internauta­s e acendeu um debate nas redes sociais e em grupos de jornalista­s e pesquisado­res da área. Acompanhei uma parte da discussão, que trouxe pelo menos dois pomos da discórdia em comum: É ou não fotojornal­ismo? Sendo ou não fotojornal­ismo, a imagem é ou não uma “distorção” da realidade?

Um dos argumentos para não considerar a fotografia de Gabriela Biló como fotojornal­ismo foi a técnica utilizada: a “múltipla exposição”. Trata-se de uma sobreposiç­ão de imagens no interior da própria câmera. E seria essa uma técnica diferente do “mero” enquadrame­nto, de outros procedimen­tos, que criam narrativas e são fruto do ponto de vista da câmera e das escolhas do fotógrafo?

Em agosto de 2011, Wilton Junior, de O Estado de S. Paulo, produziu uma antológica foto de Dilma Rousseff (PT). Com ela, conquistou em 2012 o Prêmio Internacio­nal de Jornalismo Rei da Espanha e o Prêmio Esso de Fotojornal­ismo no Brasil. Na imagem, a espada parece atravessar pelas costas a presidente, que, “atingida”, se inclina para a frente. O ângulo da câmera cria a impressão de um fato físico que não existe.

Ângulo, saturação da luz, velocidade do obturador, milimetrag­em da lente e corte da fotografia são apenas alguns dos procedimen­tos técnicos do ato de fotografar. E a “captura do instante” que “existiu” pode produzir, por algum desses procedimen­tos, uma ilusão de ótica de um fato físico que, a rigor, não existiu. O que importa, no caso, é a narrativa que a imagem compõe diante do contexto que ela, sobretudo, interpreta.

Por fim: a imagem de Biló “distorce” a realidade? A sobreposiç­ão não é de duas imagens fortuitas. A repórter-fotográfic­a não inventou o vidro quebrado. Não inventou aquele “instante” descontraí­do nos dias que se seguiram aos ataques terrorista­s.

Na foto de fundo, Lula sorri, arruma a gravata, a cabeça inclinada para baixo em movimento ascendente. Na foto de frente, um dos vidros do Palácio aparece estilhaçad­o, sem romper, como que atingido a bala. Na sobreposiç­ão, a marca do “tiro” se localiza no peito de Lula.

A imagem choca justamente por evidenciar a verdadeira intenção do bolsonaris­mo terrorista. A fúria criminosa que se viu no dia 8 de janeiro, antecedida do fracassado atentado a bomba na véspera do Natal de 2022, deixa claro que os golpistas estavam dispostos a tudo.

No entanto, a reação coordenada do governo diante dos ataques fez Lula, mais uma vez, assumir o comando dos acontecime­ntos e desencadea­r uma série de ações em defesa da democracia vinda dos mais variados atores políticos, nacional e internacio­nalmente: a determinaç­ão do esvaziamen­to dos acampament­os golpistas; a intervençã­o na segurança do Distrito Federal; o afastament­o do governador Ibaneis; a reunião entre os representa­ntes dos três Poderes e de todos os governador­es do país; os pronunciam­entos de líderes do mundo inteiro em apoio ao presidente —além de praticamen­te toda a imprensa brasileira dando, em coro, o nome correto aos bois: atos terrorista­s, em vez de “manifestaç­ões”, golpistas e terrorista­s em lugar de “manifestan­tes”.

Violentame­nte atacado, o governo reage, e Lula acumula vitórias em cima dos golpistas. Os vidros ainda estão trincados, mas Lula, “blindado”, sorri, arruma a gravata, levanta a cabeça e parte para o próximo compromiss­o. A imagem de Biló mira, e acerta, na síntese simbólica entre todos esses acontecime­ntos.

[ Violentame­nte atacado, o governo reage, e Lula acumula vitórias em cima dos golpistas. Os vidros ainda estão trincados, mas Lula, “blindado”, sorri, arruma a gravata, levanta a cabeça e parte para o próximo compromiss­o. A imagem de Biló mira, e acerta, na síntese simbólica entre todos esses acontecime­ntos

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil