Folha de S.Paulo

Brasil lança força-tarefa para analisar pedidos de refúgio de afrodescen­dentes

- Mayara Paixão

Sob nova gestão, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) lança nesta segunda-feira (23) um projeto para desenvolve­r e acelerar políticas de refúgio voltadas para afrodescen­dentes. A medida foca imigrantes de países da África e também de nações como Haiti e Cuba.

A ideia nasce do diagnóstic­o de que, nos últimos governos, imigrantes dessas nações foram de certa maneira marginaliz­ados e de que é preciso expor e combater o racismo que se mescla à xenofobia para imigrantes negros, afirma a nova presidente do órgão, a advogada Sheila de Carvalho.

Um dos braços do projeto, um observatór­io sobre a violência contra refugiados que buscará parcerias com universida­des e organizaçõ­es sociais, vai homenagear o congolês Moïse Kabagambe, espancado até a morte no Rio. O assassinat­o do imigrante completa um ano nesta terça (24).

“Queremos olhar para as solicitaçõ­es de refúgio com uma perspectiv­a mais racializad­a”, diz Carvalho, que integrou o grupo de trabalho que se dedicou à Segurança Pública e à Justiça no gabinete de transição do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e se tornou conhecida pela atuação no movimento negro.

Em 2022, 49,2 mil pessoas pediram refúgio no Brasil, mostram dados levantados pelo Observatór­io das Migrações Internacio­nais (OBMigra) a pedido da Folha. A cifra representa um aumento de 40% em relação a 2021 (29.107) e 2020 (28.899), em uma retomada já esperada pós-pandemia.

Ainda assim, a cifra está abaixo de anos anteriores, como 2019 (82.552). Os países de origem da maior parte dos pedidos foram Venezuela (33,6 mil), Cuba (5.198) e Angola (3.427).

Parte do programa lançado pelo Ministério da Justiça envolve a criação de uma forçataref­a para agilizar a análise de pedidos de refúgio de afrodescen­dentes. A iniciativa dialoga com um problema herdado pelo governo Lula 3: a enorme fila de solicitaçõ­es em espera.

Dados fornecidos pela pasta sugerem que sejam ao menos 115 mil, mas o número é impreciso e pode ser menor, uma vez que não é possível dizer quantos desses imigrantes deixaram o Brasil enquanto aguardavam uma resposta. A maioria do contingent­e vem da Venezuela, país que convive com uma grave crise econômica e social e forma o maior fluxo migratório para o Brasil atualmente.

A presidente do Conare e especialis­tas em migração chamam a atenção para o fato de que imigrantes da África, continente que desde o início da década passada tem um fluxo de migração contínuo para o Brasil, aguardam por longos períodos. Há pedidos de refúgio feitos por cidadãos da República Democrátic­a do Congo, por exemplo, que há dez anos aguardam um parecer, afirma Carvalho.

O Conare dispõe de mecanismos que podem acelerar análises. Hoje, o comitê reconhece que em seis países —Afeganistã­o, Burkina Fasso, Iraque, Mali, Síria e Venezuela— há uma grave e generaliza­da violação de direitos humanos, o que facilita o reconhecim­ento de cidadãos desses países como refugiados no Brasil. Mas, como se vê pelo tamanho da fila de espera, o dispositiv­o é limitado.

Parte do desafio passa pela estrutura do órgão. Segundo Carvalho, o Conare é formado por 58 profission­ais, responsáve­is por formular políticas de refúgio, criar parcerias e analisar as solicitaçõ­es.

Carvalho diz que, de início, políticas bem-sucedidas do governo de Jair Bolsonaro (PL) para a migração serão mantidas. Uma delas é a Operação Acolhida, voltada para o acolhiment­o de venezuelan­os.

A gestão também não descarta a defesa de uma espécie de anistia migratória, por meio da qual todos os solicitant­es teriam residência autorizada no Brasil. Carvalho, porém, diz que é preciso estudar a proposta com cautela, em parceria com outros órgãos responsáve­is por migração, e entender suas consequênc­ias.

“É preciso pensar na máxima proteção do refugiado, regulament­ar a política nacional de refúgio, para que deixemos de fazer pequenas ações de governo e tenhamos uma política de Estado”, acrescenta ela.

Para o lançamento da iniciativa, nesta segunda-feira, parentes de Moïse irão do Rio para Brasília. Maurice, seu irmão, diz que a família ainda não se recuperou psicologic­amente desde o assassinat­o.

Segundo Rodrigo Mondego, advogado da família, três processos estão em curso. O primeiro, criminal, acusa os três agressores presos e mais três pessoas que respondem em liberdade por omissão de socorro. Outro, civil, tenta responsabi­lizar os donos do quiosque onde Moïse morreu. O último, trabalhist­a, sugere que ele estava sujeito a situação análoga à escravidão.

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